Todos os dias, no Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL), máquinas de café profissionais da Delta são desmontadas, as suas peças limpas em profundidade, substituídas as que estiverem desgastadas ou avariadas e, depois de novamente montadas, devolvidas à proveniência como se estivessem novas – quem não soubesse, diria mesmo que nunca antes daí saiu um café expresso. Entre os cerca de 960 homens a cumprir pena ou em prisão preventiva no EPL, junto ao Parque Eduardo VII, cerca de 70 trabalham nas oficinas de carpintaria, nas de serralharia, de mecânica, eletricidade, canalização, cozinha, lavandaria ou até nas de tipografia. Há, contudo, uma ocupação laboral mais procurada do que outras. “Para aqueles que se destacam noutros trabalhos, vir para a Tecnidelta é quase um prémio, uma promoção”, diz Isabel Vicente Flores. “É um trabalho mais limpo, especializado, com outro estatuto. Muitos pedem para vir para cá”, acrescenta ainda a diretora do EPL, enquanto nos acompanha para lá do muro que define o perímetro da prisão, rumo à oficina da Tecnidelta.
Antes de avançarmos, um pouco de contexto. Na primeira metade da década de 1980, a Delta recebia por vezes queixas de que o café não estava a sair bem. Alguns clientes não conseguiam tirar café em condições, por isso os lotes vinham devolvidos. Como o problema não era da matéria-prima, só podia ser do equipamento. Pormenor: na altura, a Delta ainda só comercializava café; as máquinas nos estabelecimentos comerciais pertenciam a marcas como a Brasilia, Cimbali ou Faema. Isso não impediu Rui Nabeiro de criar um centro de reparações – uma espécie de hospital de maquinaria, que colocou técnicos e vendedores a trabalhar em conjunto – que garantisse que o café chegaria sempre às chávenas em perfeitas condições. Foi assim que nasceu a Tecnidelta, que hoje tem cerca de 70 técnicos espalhados pelo país em departamentos locais, para estarem próximos dos clientes e poderem fazer reparações mais simples. Na sede, que fica em Campo Maior, existem duas unidades distintas: numa fazem-se reparações mais complexas, noutra produzem-se de origem máquinas de café da marca própria, a Mayor.
Em 2008 arrancou um protocolo entre a Direção-Geral de Serviços Prisionais e o Grupo Delta que visava “a formação de reclusos para a sua integração e reinserção social”, lembra o diretor da Tecnidelta, Rui Lagarto. “Foi uma cartada muito importante. Em termos de reparações, consideramos os estabelecimentos prisionais como uma extensão da Tecnidelta.” O protocolo chegou a incluir até 11 prisões, mas a pandemia reduziu o número atual a sete: o Estabelecimento Prisional de Lisboa, de Paços de Ferreira, de Coimbra, de Elvas, do Porto, de Silves e do Vale de Sousa. As prisões disponibilizaram o espaço, enquanto a Tecnidelta criou as infraestruturas para que o trabalho se pudesse realizar.
Entre os cerca de 960 homens a cumprir pena ou em prisão preventiva, à volta de 70 trabalham nas oficinas de carpintaria, nas de serralharia, de mecânica, eletricidade, canalização, cozinha, lavandaria ou até nas de tipografia. “Para os que se destacam, vir para a Tecnidelta é quase um prémio.”
“Foi comigo que o projeto começou”, conta com orgulho o guarda Luís Amorim, responsável pelas oficinas de trabalho do EPL, o que inclui os 15 reclusos que todos os dias se ocupam das máquinas de café. Eles pegam no serviço às 9h15, param para almoçar às 11h45, retomam a labuta às 14h e prosseguem até às 16h30. São cinco horas por dia, cinco dias por semana. “Trabalham em equipa e aprendem. Alguns já têm conhecimentos de eletricidade ou pintura, por isso é que foram escolhidos para aqui. Os outros não, e esses aprendem cá. Se um falha, falham todos.”
Os 15 estão espalhados por estações de trabalho ao longo da oficina, que está organizada como uma linha de montagem. Cada um tem a sua banca e tarefa específica. Com exceção da desmontagem, que todos fazem, todo o trabalho é especializado. Já montar as máquinas é tarefa de um único homem, o recluso que coordena os trabalhos da oficina e o que trabalha neste projeto há mais tempo.
“Estou cá há três anos, mas tive outras ocupações antes”, conta. “Sou o único que monta as máquinas, que é algo que me leva um quarto de hora a fazer.” O que demora mais é tudo o que vem antes: a limpeza, os banhos de ácido para remover o calcário, a substituição de peças, a pintura, os testes com água a pressão. Passam-se em média três dias desde o momento em que uma máquina de café entra no EPL até que saia. Ao fim do mês, se não faltarem peças – que são sempre novas, provenientes de Campo Maior, – a oficina consegue entregar 50 máquinas. “Agora somos 15, mas chegámos a entregar 34 máquinas só com 10 pessoas.”
Se no início do protocolo, em 2008, também moinhos de café e máquinas de lavar chávenas eram arranjadas, hoje os reclusos dedicam-se apenas às máquinas de café profissionais. A Mayor é que ocupa as estações de trabalho da oficina, mas num anexo está já a nova Casadio, que em breve merecerá a atenção desta oficina. Falta uma coisa: formação. Esse é o trabalho do eng.º Vítor Torres, também responsável por fazer a ponte entre as oficinas dos estabelecimentos prisionais e a Tecnidelta. Sejam pedidos de ferramentas, peças ou fardamento, é ele o elemento de ligação – pela proximidade a Campo Maior, só o Estabelecimento Prisional de Elvas sai fora da sua “jurisdição”.
“Por regra, há um técnico que se desloca à oficina e testa os equipamentos para validar a intervenção que foi feita. Também temos um protocolo de teste para conseguir despistar problemas graves”, conta o engenheiro de 61 anos. “Ao fim de três ou quatro meses, eles próprios sabem detetar anomalias. Tentamos transmitir esse conhecimento, porque essas oficinas acabam por funcionar como se o pessoal não fosse recluso.”
Cada um tem a sua banca e tarefa específica. Com exceção da desmontagem, que todos fazem, todo o trabalho é especializado. Já montar as máquinas é tarefa de um único homem, o recluso que coordena os trabalhos da oficina e o que trabalha neste projeto há mais tempo.
“No início, porque não sabíamos como ia correr, a proximidade era quase semanal”, lembra agora Rui Lagarto. “Tínhamos lá sempre alguém.” A proximidade era tanta que houve até quem arriscasse passar lá a noite: “A certa altura, um colega distraiu-se com as horas e ia ficando preso lá dentro. Foram os reclusos que avisaram para a situação!”
Desde o início do protocolo, já mais de 33 mil máquinas foram reparadas nos estabelecimentos prisionais – 3755 em 2017, 5324 em 2018 e 5186 em 2019. A pandemia levou ao fecho das oficinas em 2020 e a uma redução em 2021: apenas 1209 foram entregues. Já hoje, saem dos estabelecimentos prisionais em média 100 máquinas por mês.
O grande desafio, para Rui Lagarto, é a formação. “Felizmente há uma grande rodagem entre as equipas. Porque mal daqueles que ficarem lá muitos anos, não é? Mas isso leva a que tenhamos de dar formação constantemente aos novos elementos, porque as máquinas têm de vir de lá em condições”, diz o diretor da Tecnidelta. E vêm mesmo.