Em 1968, Rui Nabeiro começa a concretizar um sonho antigo: tornar-se produtor de vinho. É nesse ano que adquire a Herdade das Argamassas, onde hoje – além do complexo industrial da Novadelta e do Centro de Ciência do Café – se situa a Adega Mayor e uma parte considerável das vinhas da empresa. 

Nessa época, estaria longe de imaginar que passados 53 anos, às quatro e meia de uma madrugada de agosto esses campos se encheriam de trabalhadores munidos de cestos e lanternas de cabeça para uma invulgar sessão de vindima noturna. 

“Prefiro a esta hora, é muito melhor. Quanto mais tarde pior, por causa do calor”, diz-nos Ana, uma das coletoras de uva presentes no campo. Tem 56 anos e faz isto desde os 13 – trabalha o ano inteiro no campo: “Quando não estou nas vindimas, estou a apanhar a fruta, fazer a poda, o que for preciso.” Está com as amigas Lurdes e Maria, e a conversa corre fluida entre as três. “Assim é mais fácil, nem damos pelo tempo passar”, justificam entre sorrisos. Atrás, outros homens e mulheres vão desempenhando a mesma tarefa, de forma mais silenciosa mas igualmente eficaz. 

Visto de longe, o cenário é, no mínimo, curioso: espalhados pelo campo, com as lanternas presas por uma fita à cabeça, os trabalhadores parecem pirilampos que se vão mexendo lenta e coordenadamente, vinha acima, vinha abaixo, criando um inesperado jogo de luzes. Empurram os cestos que enchem de uvas com os pés, antes de os passar aos tratores, numa coreografia de corpo inteiro, fisicamente exigente, que não lhes dá tempo para apreciar a vista. 

E bem que ela mereceria essa apreciação – à medida que as horas avançam e o Sol começa a dar sinais de vida, o clarear do céu permite ir desvendando, ao longe, a silhueta do edifício da Adega Mayor, tal e qual como nos esboços de Siza Vieira, numa visão quase poética.

Não nos resta, porém, muito mais tempo neste cenário idílico. Partimos em breve para acompanhar outra equipa da Adega Mayor que vindima a 40 minutos de distância, em plena serra de São Mamede, nos arredores de Portalegre. Estão na Quinta da Mata, uma propriedade que não pertence à Adega Mayor, mas a quem compram as uvas – de vinhas velhas, neste caso – e em que, por isso mesmo, ficam responsáveis pela sua colheita. O modelo repete-se, aliás, noutras parcelas.

O clima é diferente, as uvas também, as pessoas idem. Mas o espírito não muda. Somos recebidos por Joaquim Ferreira, o responsável pela equipa que ali está: 14 pessoas ao todo, contando com ele. 

Joaquim Ferreira

Este elvense de 55 anos começou por trabalhar em pomares de outras frutas – pêssegos e maçãs –, antes de, há mais de duas décadas, se ter tornado um dos cuidadores das vinhas do Grupo Nabeiro. Gosta da agitação da vindima, “mas quando o sol fica a pique e começa a apertar, torna-se duro”, confessa. No resto do ano é mais calmo. Trata das podas, pré-podas e dos ladrões. Ladrões? “Sim, são as folhas verdes que não dão uva”, explica. E durante o inverno também dá uma perninha no olival, claro. Não é homem de muitas palavras, o trabalho vem primeiro. Prefere tratar da uva do que encher o copo. “Mas também sei apreciar um bom vinho”, diz, antes de eleger o Caiado branco como o seu favorito. Uma escolha compreensível, até porque o calor já se faz sentir.

Esse calor parece não incomodar, contudo, outra das figuras carismáticas desta equipa, Gil Rasquilho. Está habituado: tem 39 anos e, desde que se lembra, sempre fez do campo o seu sustento. “Na azeitona, na vinha, onde havia trabalho.” 

Gil Rasquilho

Está na Adega Mayor há sete anos, e o rebuliço da vindima não o assusta. “Anda-se um bocadinho mais apertado nesta altura, mas faz-se bem.” Até porque o vinho da casa é bom e Gil é adepto confesso. “Ah, pois, de vez em quando abro uma garrafinha.” Não lhe peçam é para escolher um rótulo, que não tem favoritos: “O importante é ter sempre o copinho cheio”, reforça.

A equipa prossegue o seu trabalho e nós voltamos a Campo Maior. É que enquanto uns colhem as uvas, outros vão mantendo a máquina a funcionar na adega, que, por estes dias, está num alvoroço. Enquanto de um lado se faz a seleção das uvas colhidas e o respetivo encaminhamento, noutro recebem-se inúmeros visitantes, miúdos e graúdos, especialistas em vinho, arquitetura ou simples curiosos.

Raquel Chambel, 44 anos, dá as boas-vindas a todos eles. Esta técnica de enoturismo é uma das responsáveis por receber e guiar quem ali chega à procura de ficar a saber mais sobre os vinhos, o edifício ou o projeto em geral. “Faço visitas, apresentações de vinhos, workshops, experiências mais elaboradas como piqueniques, eventos ou provas de vinhos de topo…”, enumera. 

Raquel Chambel

Na época de vindima, o programa pode incluir uma experiência no campo, de colheita de uvas, “que dura cerca de uma hora” antes de se passar à prova. Raquel fala com visível prazer deste trabalho, ela que tem memórias bem vívidas do tempo em que ajudava os avós, da zona de Nisa, a apanhar as uvas para o vinho de talha que ali produziam.

Confessa-nos que o contacto com os clientes é a parte mais aliciante da função: “Quando faço as visitas, ponho as pessoas à vontade para que também partilhem as suas experiências e levem daqui uma experiência gratificante. Não sou só eu a falar. Gosto que as pessoas interajam e quero que sintam que foram acolhidas, que não vieram simplesmente visitar uma adega, mas sim que foram recebidas por alguém que se importou.” Quanto aos vinhos que dá a provar, não hesita em eleger o seu favorito. “Pai Chão. Adoro simplesmente a sensação de bebê-lo, parece que bebemos veludo. É uma sensação de conforto, aconchegante.”

Chega, entretanto, um novo grupo de visitantes. É tempo de Raquel prosseguir a sua lufa-lufa diária, e de pararmos no laboratório para conhecer outra peça essencial nesta engrenagem: Margarida Barreiros. Com formação em Química, trocou as águas pelo vinho há oito anos. A comparação é inevitável. “É um produto muito diferente, muito desafiante porque o mercado assim o exige: os consumidores querem cada vez mais saber o que está a acontecer, perceber porque é que existem determinados aromas, cores, se houve maceração, batonnage… na água estamos habituados a abrir a torneira e a estar tudo bem, ninguém questiona.” 

Margarida Barreiros

Margarida é, oficialmente, coordenadora de análise e controlo de processo. Ou seja, cabe-lhe “verificar todos os parâmetros analíticos quer da uva quer do vinho.” A descrição do cargo pode não parecer a mais entusiasmante para os leigos. Nada mais errado, porém – descreve o seu trabalho com um brilho nos olhos e até uma certa vaidade. “Tenho uma visão única do que se faz na adega: por um lado, trabalho com o Francisco [Pessoa, responsável de campo] na viticultura, e percebo o que é que estamos a ver no terreno – se a película está pronta, se a polpa está pronta, como está a grainha… E depois com o Carlos [Rodrigues, enólogo]: todos os dias vamos provar e ver o vinho a crescer, a fermentação alcoólica e malolática a decorrer e vemos o sumo de uva a transformar-se num vinho e este a crescer e a desenvolver-se ao longo do tempo.” 

Carlos Rodrigues, esse enólogo, está por perto e junta-se à conversa, até para descansar um pouco da agitação. É que, apesar de gostar muito da época da vindima – “é aquilo que nós esperamos todos os anos”, diz –, não esconde que é cansativa. 

“É nestas alturas que começo a ver que estou a ficar velho, mais gordo, mais acomodado”, brinca. Não está assim tão velho: tem 42 anos, os últimos sete passados na Adega Mayor. Não tem raízes alentejanas, é do Estoril, mas a família sempre esteve ligada à agricultura. Quando chegou a altura de escolher um caminho profissional, nem lhe passou pela cabeça a hipótese “de estar fechado num escritório”.

Hoje, tanto gosta de passar tempo na vinha com os viticultores como realça a importância do trabalho de controlo analítico que faz com Margarida. “Conseguimos perceber – quando estamos a querer levar ao extremo determinado vinho, mosto ou uvas – quando é que devemos parar. Este apoio analítico e este controlo de qualidade vão acendendo luzes vermelhas ou amarelas. E já estamos a mexer com um milhão e 200 mil litros de vinho; logo, não basta a prova do enólogo, temos de ter um fundo analítico e de controlo para gerir um volume deste tamanho.”

É esse trabalho, então, que permite pensar mais fora da caixa e responder aos desafios constantes de inovação, que vão surgindo internamente, do espírito inquieto da empresa, com propostas que fogem ao perfil habitual dos vinhos alentejanos. “Temos, felizmente, nesta casa potencial e aval para experimentarmos, sermos extrovertidos e tentarmos sempre puxar ao máximo para ver se conseguimos sair do normal. Este é um trabalho de equipa, sobretudo. Mesmo além da área dos vinhos há muita criatividade. Desde a Rita [Nabeiro] que nos está sempre a espicaçar, ao trabalho gráfico e de imagem que sai nas garrafas. Portanto, vemo-nos obrigados a oferecer coisas novas, também elas irreverentes.”

Não é de estranhar, assim, que quando espicaçado a escolher um vinho favorito de entre todo o portefólio, Carlos opte por mencionar um desses monocastas menos comuns. “Tenho um especial carinho por estas últimas novidades que temos vindo a lançar. Gosto muito do nosso Galego Dourado, o primeiro que saiu, em 2018, e o Sangiovese também foi uma boa surpresa. São vinhos que me dizem muito, do ponto de vista de os ter criado e acompanhado até à garrafa. Dá-me imenso gozo bebê-los e mostrá-los às pessoas.”

Andreia Reis e Carlos Rodrigues

Carlos não é o único enólogo da casa. Com ele trabalha Andreia Reis, 31 anos, que começou por ser estagiária, mas a quem Carlos reconheceu desde cedo “capacidade de liderança”. O seu percurso até chegar à Adega Mayor começou de forma improvável. “Desde pequena que adorava anatomia. Queria muito tirar Anatomia Patológica. Entretanto, desenvolvi uma paixão por Ciências Forenses, queria ir para a vida militar e depois desenvolver essa área. Mas havia qualquer coisa que me dizia ‘ok, ainda não é isto, há outra coisa qualquer à tua espera’. Foi quando comecei a entrar no mundo dos vinhos, a conhecer e a provar. Estudei Biotecnologia na universidade, e foi com uma cadeira opcional de Produção de Vinho e Azeite que tive mesmo a certeza de que queria fazer disto vida.”

Andreia é responsável pela adega mais discreta da marca, a que fica na Herdade da Godinha, e que apesar de ser mais pequena do que a principal – onde estamos – acaba por processar mais uva. “Nessa adega trabalhamos com quantidades maiores, aqui focamo-nos nos topos de gama, nos vinhos mais delicados.” Apesar dessa função, acaba por trabalhar todos os vinhos Adega Mayor em conjunto com Carlos.

Com o seu parceiro de enologia partilha o especial apreço pelos monocastas da marca. “Gostei muito de uma edição que fizemos de Arinto, há dois anos, e acho muito interessante o Gouveio deste ano. E se fosse um vinho para consumo assim mais regular, ia para outra monocasta: Touriga Franca.” Para si, os vinhos de um só tipo de uva têm especial interesse nesta fase da carreira. “Como ainda me estou a iniciar no mundo da enologia, gosto de perceber as diferenças a nível da prova da uva, depois ver o resultado na garrafa e o comportamento do vinho. É interessante distingui-las, perceber como evoluem.”

A forma como evoluem está dependente do último entrevistado do dia: Ricardo Cordeiro. Encontramo-lo no seu habitat natural, a sala das barricas. 

Ricardo Cordeiro

Este campomaiorense de 39 anos anda entusiasmado com os ensinamentos que retirou de uma estadia recente de duas semanas na Seguin Moreau, um dos maiores fabricantes mundiais de barricas. “Fui para a secção das barricas de conhaque, onde estão os mais velhos que lá trabalham. Fiquei dois dias a ver, uma semana a aprender e depois deixaram-me sozinho a ver se me safava. Eles veem logo pelo trabalhar do martelo, que pesa dois quilos e meio, se uma pessoa tem jeito.”

Ricardo tem jeito. Hoje diz-se capaz de trocar tampos, aduelas, reparar fugas. E também tem jeito para fazer amigos, com promessas inesperadas. “Eles receberam-me tão bem, foram espetaculares. Deram-me bons vinhos a provar e pronto, sabe que quando estamos alegres… prometi que fazia uma tatuagem com o símbolo da Seguin Moreau.” O prometido é devido: assim que chegou a Campo Maior, mandou inscrever o símbolo na pele. “Mandei-lhes a fotografia e eles só diziam: ‘estás maluco’, nem acreditavam. Mas agradeceram muito”, recorda com um sorriso.

A energia de Ricardo Cordeiro é contagiante. Trabalha desde muito cedo – na infância andava nas feiras, com a família, primeiro em barraquinhas de tiro, depois nas farturas. Emancipou-se logo aos 17 anos: começou nas obras, mas o seu sonho já era trabalhar na Delta. “Mas para o café, porque eu adorava o senhor Rui e o café. Fui ter com ele, o senhor Rui olhou-me de cima a baixo e disse-me: ‘espera um bocadinho que o senhor Emídio (motorista) já te deixa no trabalho’. E pronto: a roupa com que fui foi a roupa com que comecei a trabalhar, logo a ajudar a escolher uva.”

Tinha, à época, 23 anos e uma inquietude natural. “Comecei por escolher uva e lavar tudo o que era da linha de seleção, caixas, reboques, tudo. Só que eu não parava, ia lá dentro à adega ver o resto do trabalho e gostava. Então fizeram-me uma proposta.” Desde aí já fez de tudo um pouco, das máquinas às prensas, das filtragens às barricas. “Há coisas que consigo fazer com os olhos fechados. Da escolha da uva ao produto acabado sei fazer tudo”, garante.

Só não é lá grande consumidor de vinhos. “Gosto de provar o que fazemos, mas não costumo beber bebidas alcoólicas. Se tiver mesmo de escolher, escolho um Touriga Nacional. Há quem goste daqueles vinhos mais leves, mas eu não, gosto de sentir os taninos na boca.”

Entretanto, chamam por si. Ricardo é preciso no cais da uva, já que acabou de chegar mais um carregamento da dita. Antes de acudir à chamada, despede-se: “Isto é mesmo assim, nesta altura não se pára.” Pois não, pelo menos até ao lavar dos cestos.