É reinventando os negócios. É recuperando tradições. É reunindo novas ideias e formas de trabalhar. É repensando projetos e resistindo ao desalento. Estes são os princípios que norteiam a delta desde a sua fundação. E estas são histórias que nos inspiram. Histórias de gente que nunca pensou em desistir.
Resistir pela arte
O ilustrador Nuno Saraiva encontrou no silêncio da manhã o espaço para voltar a desenhar apenas para si. Daí resultou um conjunto de cartoons agrupados sob o hashtag #quarentenaemrisco, uma expressão de resistência pessoal ao confinamento.
O seu trabalho esteve nas páginas de publicações como O Independente, o Expresso ou o Público, com que atualmente colabora: são dele as capas do suplemento satírico (e semanal) Inimigo Público. É professor no Centro de Arte e Comunicação Visual e na Lisbon School of Design, e foi distinguido com uma série de prémios ao longo da sua carreira, sendo um nome de referência nas áreas da ilustração editorial e da banda desenhada em Portugal. Apesar deste currículo, Nuno Saraiva nunca tinha mergulhado no universo das redes sociais: foi o confinamento voluntário, iniciado em março, que o levou a fazê-lo. E a ganhar-lhe um certo gosto.
Apesar de ser freelancer “desde sempre”, Nuno nunca gostou de trabalhar em casa, onde se distrai facilmente. No início deste ano, desenhava diariamente num ateliê partilhado, situado na zona de Santa Apolónia, em Lisboa. Fechar-se entre quatro paredes foi mais difícil do que esperava. “Com três crianças em casa e uma data de tarefas domésticas, foi um desafio”, confessa. Encontrou nos cartoons um momento seu, uma forma de resistir. “Decidi fazer desenhos para mim, o que não acontecia desde a adolescência, porque organizo o meu trabalho de forma a estar sempre ocupado. Quando durante esta fase acordava cedo, pelas sete da manhã, com a casa silenciosa e ainda sem o que fazer, desenhava.”
Os cartoons matinais de Nuno começaram a ser publicados na sua página de Instagram diariamente, acompanhados do hashtag #quarentenaemrisco. O que começou por acaso, acabou por ganhar dimensão: as publicações viralizaram e chegaram rapidamente às páginas do suplemento P2, também do jornal Público, numa parceria com Marco Ferreira Neves, que criava textos em banda desenhada para acompanhar os cartoons de Nuno, impressos ao longo de 12 semanas.
Mas o envolvimento com o Instagram continuou no pós-confinamento. “Percebi que chegava a um público a que normalmente não chego. Quem conhece o meu trabalho é, de uma forma geral, quem consome informação através de jornais. Mas nas redes sociais estão muitas pessoas que não o fazem, às quais os meus desenhos não chegam habitualmente. Estes cartoons são uma forma de transmitir uma mensagem e de estimular as novas gerações a pensarem de forma mais crítica sobre o que se passa no mundo.”
Os temas eram variados, mas sempre algo políticos, tanto com representações de figuras nacionais, como António Costa, Graça Freitas e Rui Rio, como internacionais, casos de Trump, Bolsonaro ou Boris Johnson. Nuno desenhou sobre o distanciamento social nas creches, a invisibilidade das pessoas sem-abrigo, as falhas do ensino à distância ou a liberdade conquistada no 25 de Abril, entre outros temas. “Estes cartoons são amargos, poéticos e satíricos. Todos têm como objetivo alertar para problemas que vejo à minha volta: a ascensão da extrema-direita, o racismo, o perigo do politicamente correto.”
Repensar um restaurante
Antes da pandemia, Rui Oliveira chegou a servir 260 refeições por dia no seu pequeno restaurante, o Maria Azeitona. Mas no espaço de duas semanas foi obrigado a repensar todo o negócio, a montar um site e um serviço de entregas diversificado. O objetivo? Sobreviver.
Logo no final de fevereiro, o outrora concorridíssimo Maria Azeitona, no centro da Amadora, começou a ressentir-se das notícias vindas da China, primeiro, e depois de Itália e Espanha. “Notámos logo nessa altura. Estávamos com as piores médias de ocupação de sempre e com uma taxa de cancelamento de reservas brutal”, recorda Rui Oliveira, responsável pelo restaurante.
Rui e o sócio, Fernando Ribeiro, definiram rapidamente um plano de ataque à crise. E repensaram toda a operação numa questão de semanas, até à entrada em vigor do estado de emergência. “Tínhamos de apostar muito forte no take-away, era a nossa única hipótese.” Graças a essa aposta, o Maria Azeitona nunca encerrou verdadeiramente: as portas fecharam-se, mas a cozinha continuou a produzir para fora. “Fomos o primeiro restaurante na Amadora a ter acordo com a Uber Eats, mas nunca o tínhamos ativado. Tivemos de fazê-lo sem qualquer experiência em delivery.”
Assim que o restaurante ficou visível na aplicação, os pedidos começaram a cair. E de que maneira. O fenómeno fez com que num curto espaço de tempo o Maria Azeitona tivesse um dos piores e um dos melhores dias de sempre em termos de faturação.
Esse foi apenas o primeiro passo rumo à digitalização do restaurante. “Sabíamos que o caminho tinha de ser digital, então montámos o nosso próprio site em 24 horas”, conta Rui. Uma tarefa facilitada pelo background digital de Fernando. Em mariaazeitona.com tornou-se possível, com meia dúzia de cliques, consultar todos os serviços e pratos disponíveis.
Além da reserva de mesa – que voltou a ser aconselhável – o Maria Azeitona funciona em modo take-away, com recolha no restaurante, no modo Recolha Express, em que a refeição é entregue no carro, estilo drive-in, ou então no tradicional modo delivery, com entrega em casa dos clientes.
Descrita desta forma, a adaptação parece simples. Não foi. “O delivery está pensado para fast food. E nós servimos comida tradicional portuguesa, que deve chegar ao cliente quente e nas melhores condições”, explica Rui Oliveira. Isso cria desafios inesperados. “No restaurante, servimos os ovos mexidos com farinheira mal passados. Para entrega temos de passar melhor, caso contrário chegam a casa do cliente líquidos”, exemplifica. Outros petiscos, como os peixinhos da horta, nem sequer servem para fora. “Ficam completamente moles, não dá mesmo.”
Nesta fase, o feedback dos clientes mais fiéis foi importantíssimo. E o próprio Rui chegou a fazer entregas para ter uma noção mais real do mercado. “Isto também não teria sido possível sem a equipa, que se dispôs logo a vir trabalhar”, refere. A sua intenção é que a experiência, quer no restaurante quer em casa, seja a melhor possível. E isso também passa por gestos simples, como o agradecimento personalizado nos sacos de entrega que fazem questão de escrever.
As portas do restaurante reabriram a 18 de maio, assim que o Governo permitiu. Mas, garante Rui, o foco nas entregas veio para ficar: “O paradigma mudou e os restauradores têm de se adaptar.”
Recuperar uma tradição local
Durante o período de confinamento, Mariana Sousa decidiu olhar para dentro — de si e da sua marca de roupa. E assim criou as máscaras com bordados tipicamente madeirenses: peças contemporâneas que recuperam uma tradição perdida no tempo.
Orgulhosamente madeirense, Mariana Sousa nasceu e cresceu “no meio dos trapos”, como diz. Sendo a mãe e as tias costureiras, desde pequena que idealizava as suas próprias peças de roupa e as via nascer de raiz. Assim, não foi surpresa para ninguém quando foi para Castelo Branco estudar design de moda e têxtil e menos ainda quando regressou à Madeira para fundar a sua própria marca, a Sous, cujo nome, “so us” (“tão nós”), relembra a importância de manter sempre presente quem somos e de onde viemos.
Nascida em 2013, a Sous é um reflexo da própria Mariana, em cada momento. É ela que concebe criativamente as peças, que são depois produzidas manualmente por artesãos madeirenses. Uma das artesãs é a própria mãe de Mariana, que tem um ateliê a poucos minutos do espaço da Sous, situado no centro do Funchal.
“O meu propósito é criar peças de roupa únicas, autênticas e com qualidade. Peças de que eu goste e que reflitam a minha personalidade. Só faz sentido se for assim”, descreve. E é por isso que a marca se vai transformando – à medida que Mariana se transforma. A última novidade surgiu durante a pandemia e catapultou a Sous de uma forma imprevisível. “Foi preciso começar a fazer máscaras para ver sete anos de trabalho reconhecidos em poucos meses”, conta entre risos.
Mariana fez várias máscaras em tecido, com padrões e cores originais, mas as que conquistaram a internet foram as de bordado madeirense. “Houve um dia em que sonhei com uma máscara assim. Cheguei ao ateliê da minha mãe e contei-lhe, falámos sobre aquela possibilidade e rimos como umas perdidas com a ideia de criar uma peça a partir de um sonho meu.” O sonho tornado realidade revelou-se um sucesso tal, que no dia em que colocou as peças no site esteve até às duas da manhã a responder a mensagens.
A ideia era recuperar o bordado tradicional da Madeira, começando pelos “Vilhões”, um casal bordado à mão que está usualmente em toalhas e lenços antigos. “Estas coisas só se veem em casa das velhotas, o que é uma pena. Eu pensei: porque não recuperar esta tradição?”
O exterior da máscara é em linho da terra e o interior é 100% algodão, bem como os bordados, que são feitos à mão. E se a primeira máscara é uma celebração do amor entre duas pessoas, com a representação de um homem e uma mulher, a segunda surge como uma ode ao amor-próprio. “Mais vale flores que mal acompanhada” tem apenas uma mulher bordada, rodeada de flores. “Substituí a presença de outra pessoa por flores. Isto tem que ver com gostarmos de estar sozinhos, gostarmos de nós. É uma maneira de estar na vida.”
As máscaras bordadas acabaram, inclusive, por levar Mariana a criar uma nova coleção, que será apresentada no princípio do outono. Entre as várias peças, destaca-se um colete com bordados da Madeira, inspirado num grupo de folclore da ilha.
Reunir músicos talentosos
Fechados em casa e a ver, dia após dia, os concertos marcados para 2020 serem cancelados, 19 artistas decidiram reunir talentos à distância num telefone musical estragado que lhes deu um propósito e, no final de contas, um disco conjunto.
Os artistas que integram a editora Cuca Monga – BISPO, Capitão Fausto, El Salvador, GANSO, Lancelot. E tu?, Reis da República, Modernos, ZARCO, Luís Severo e Rapaz Ego – são, música à parte, amigos. Conhecem-se faz tempo e admiram o trabalho uns dos outros, que acompanham muitas vezes da primeira fila dos concertos, já que é costume viajarem juntos nas digressões.
E foi por serem amigos que, durante o período de confinamento, se mantiveram em contacto. Nos múltiplos grupos de WhatsApp não havia sossego: por lá se partilhavam novidades, piadas e preocupações. Até que, um dia, surgiu uma ideia diferente.
“Foi o Domingos Coimbra quem se lembrou disto”, conta Manuel Palha, guitarrista dos Capitão Fausto. O desafio foi lançado num desses grupos e 19 músicos alinharam participar num jogo com regras simples: cada um gravava o que quisesse (uma melodia ou uma letra) e nomeava o próximo a receber a canção, que deveria compor com base no que recebera; pelo meio, ninguém podia falar sobre o que recebia ou enviava, para que o resultado final fosse surpreendente para todos. Quem trabalhava as canções numa fase avançada, ouvia-as mais compostas, mas quem tinha contacto com elas apenas no início, desconhecia o que aí vinha.
“Gerou-se toda uma onda de entusiasmo”, recorda Manuel. “Não sabíamos se aquilo ia ficar bom ou mau, podia sair dali apenas uma inside joke. Mas resolvemos dedicar-nos ao processo, que nos manteve unidos e entusiasmados durante aquele tempo todo.”
E se havia quem tivesse material de som em casa, havia também quem não tivesse mais do que o próprio telemóvel para gravar. “Na altura, não pensámos naquilo como um disco, pensámos apenas no processo de composição à distância, uma coisa meio modular, que era artisticamente muito interessante para todos.” Passados dois meses, os músicos reuniram-se para ouvir o disco Cuca Vida, do recém-nascido grupo Conjunto Cuca Monga.
Ainda em confinamento, a “listening party” aconteceu virtualmente, numa reunião de Zoom. Entre muitos risos, todos se surpreenderam positivamente com este “álbum-cadáver-esquisito”, como lhe chamam. “Havia ali uma mistura de sonoridades e de mensagens que nunca poderia ter acontecido se fosse um disco de Capitão Fausto, ou de GANSO, ou de Reis da República. Unimo-nos para criar algo novo, sem estilo definido, sem regras. Foi uma coisa meio mágica.”
A magia foi lançada online em junho e, no último trimestre do ano, será apresentada no MusicBox. Espera-se uma festa em palco, com a formação a alterar-se ao longo do concerto.
E espera-se, sobretudo, a energia de quem está há demasiado tempo à espera de voltar a tocar entre amigos.
Reinventar um evento de luxo
Quando a pandemia tornou os eventos com público tão obsoletos como o telégrafo, Gonçalo Castel-Branco foi obrigado a reinventar a sua empresa. Esta é a história de como o premiado The Presidential se transformou no singular The Residential.
A pandemia e o consequente confinamento não vieram em boa altura para ninguém. Mas para Gonçalo Castel-Branco, profissional que se dedica à conceção e execução de eventos, o timing foi especialmente cruel. A sua empresa, a Lohad, tinha acabado de contratar mais de uma dezena de pessoas. O ano afigurava-se vintage.
Da agenda para 2020 constavam mais uma edição do The Presidential, considerado o melhor evento público do mundo em 2017 para a Best Event Awards, uma dose dupla de Chefs on Fire, o inovador festival gastro-musical que junta cozinheiros e bandas, e a estreia do Lisbon Food Circus, uma roda gigante transformada em sala de refeições dignas de estrela Michelin. Todos esses eventos foram cancelados.
“Tive de reinventar a empresa toda”, recorda Gonçalo. A reinvenção começou pelo mais emblemático dos seus eventos: o premiado The Presidential transformou-se no singular The Residential, uma experiência gastronómica que em vez de ser servida a bordo do histórico comboio presidencial, com a vista privilegiada de quem percorre a linha do Douro, serve-se na casa dos clientes, confecionada por estes, sob orientação audiovisual de alguns dos melhores chefs portugueses, numa emissão em direto, transmitida numa plataforma interativa, que permite tirar dúvidas.
Desengane-se, porém, quem pensar que bastou tirar uma letra ao nome para chegar ao novo conceito. “Gastámos muito tempo e dinheiro a pensar como recriar o mimo para com o cliente, que não existe no digital, que geralmente é um meio frio”, explica Gonçalo. A solução passou pela criação dos chamados wow moments.
A caixa em que chegam os produtos, o objeto físico, é propositadamente luxuosa.“A caixa é o comboio, é a primeira coisa que se vê. É o primeiro wow moment”, afirma Gonçalo, antes de elencar duas outras regras importantes. “Quando o cliente abre o cabaz, tem de sentir que vale mais do que o dinheiro que pagou por ele. E a experiência digital tem de ser muito boa e correr sem falhas. Por isso também investimos na produção, que tem, estar mais próxima de uma série da Netflix do que de um live de Instagram.”
Mas a construção de uma experiência única não acaba aqui. “Trouxemos para o projeto a importância do storytelling, de valorizar o produto antes da técnica, até porque quem cozinha são os clientes.” E, acrescenta, transparência: “No nosso site é possível saber quanto é que custa cada uma daquelas coisas e temos os links para comprá-las diretamente ao produtor, sem passar por nós.”
O negócio não é especialmente rentável nesta fase. Mas Gonçalo acredita no potencial de escala e, inclusive, de internacionalização: “Porque não fazer uma edição com o Massimo Bottura a ensinar a fazer o melhor prato de massa?”. Entretanto, já vai negociando edições especiais para o mercado corporativo. “As grandes empresas estão a perceber que não podem ficar muito tempo sem organizar eventos para os seus colaboradores”, justifica.
Acima de tudo, Gonçalo está convicto de que a pandemia veio acelerar a mudança na relação das pessoas com o que comem. “Não nos podemos esquecer que este vírus veio de um mercado”, relembra. “A narrativa já existia, mas andámos 20 anos para a frente em poucos meses.” E não voltaremos atrás? “Acho mesmo que não. O 11 de Setembro também mudou a nossa forma de viajar. Hoje já ninguém estranha quando tem de tirar os sapatos antes de entrar num avião.”