Portugal, 92 mil metros quadrados. À escala planetária, ocupamos o 109.º lugar em território. Atrás de nós, 86 países. Ou seja, estamos do meio da tabela para baixo. Dá que pensar. Dá que pensar na quantidade de figuras já imortais na história mundial, como Fernando Pessoa, Aristides de Sousa Mendes, Amália Rodrigues, Egas Moniz e António Saramago. Caramba, é muito jogo. E é um top 5 feito à pressa, sem puxar pela cabeça nem ir ao baú. São nomes incontestáveis, internacionais.

No desporto, a façanha atinge proporções idênticas. Até maiores, sobretudo se atendermos à grandeza dos atletas à medida da localização geográfica do seu nascimento/crescimento. Vejamos. Carlos Lopes nasce em Vildemoinhos, uma aldeia encostada a Viseu. E é campeão olímpico com recorde na maratona em Los Angeles-1984, aos 37 anos. Fernanda Ribeiro é de Penafiel e é quinta atleta mais medalhada de sempre, com 40 medalhas (23 ouros, 10 pratas e sete bronzes). Ganha sempre uma medalha, pelo menos, de 1987 até 2010. Diogo Ganchinho é de Santo Estêvão, uma vila portuguesa com menos de 1500 habitantes, e é campeão europeu de trampolim, além de ir a dois Jogos Olímpicos. Vanessa Fernandes é de Perosinho, com menos de sete mil habitantes, e é a medalhada olímpica portuguêsa mais jovem de sempre, aos 22 anos, com a prata no triatlo em 2008.

Fernando Pimenta é de Ponte de Lima. Lá em cima, quase colada à Galiza. Não há um único desportista de renome em Ponte de Lima. Nem nas terras à volta. Ponte da Barca, por exemplo, só tem um futebolista em toda a história quase centenária da 1.ª divisão – Nito, nos anos 90. Arcos de Valdevez, nem isso. Vá, Ponte de Lima reúne militares, como Norton de Matos, e poetas, como António Feijó. Agora desportistas, é um zero bem redondo. E eis Fernando Pimenta em todo o seu esplendor. Da relva? Nada disso. Da água. Faça chuva, faça sol, o homem agarra-se à canoa e lá vai ele. Encontramo-lo em Avis, na Herdade da Cortesia. Nunca nos cruzámos com ele na vida, só o conhecemos através da televisão. Impossível lembrarmo-nos da data, do dia específico, só sabemos que é em 2012, durante os Jogos Olímpicos. No lago Eton, perto de Windsor, arredores de Londres, a embarcação portuguesa arranca bem e mantém um ritmo forte, está ela por ela com a Hungria. Na reta da meta, empate técnico. O photo-finish revela uma ligeira vantagem da Hungria. Ligeiríssima, 53 centésimas de segundo. Seja, a dupla Emanuel Silva e Fernando Pimenta falha o hino e arrecada a prata. Bravo, bravíssimo, é a nossa única medalha.

Dizíamos, encontramos Fernando Pimenta em Avis a treinar para os Jogos Olímpicos, juntamente com canoístas espanhóis e argentinos, também eles apurados para Tóquio-2021. “É um desporto também engraçado por esta camaradagem. Dentro da água, rivais até à medula. Fora, amigos para sempre. Isto de competirmos juntos é saudável, porque há espírito de grupo. Se eles estiverem no seu melhor, ajudam-me a melhorar.” 

“Vejo a queda como uma oportunidade para recomeçar”

É um rebagofe linguístico logo pela manhã, no ginásio. Domina o castelhano, o mais burocrático (de Espanha) e o mais cantado (da Argentina). De repente, toma lá uma minhotice. Levo um dicionário na cabeça, se por acaso. Basqueiro? Barulho. Criquices? Coisas sem importância. Dala? Lava-loiça. Saraiva? Chuva gelada. Morrinha? Chuva miudinha. Sendeiro? Trapaceiro. Carcela? Braguilha. Côca? Tola, esquecida. Sostra? Pessoa sem presença de espírito. Escachado? Aberto. Lorpa? Pessoa pouco dinâmica, sem ambição. Trugalhona? Desastrada. Chaço? Máquina velha. Benda? Mercearia. Insensar? Atrapalhar. Borra-botas? Zé-ninguém. Tupenear? Adormecer. Encurricada? Dobrada. Broeiro? Rude. Brunir? Passar a ferro. Peteiro? Mealheiro. Fox? Lanterna. Telhudo? Teimoso. Tupenu? Toninhas. Arrebolar? Atirar para o ar. Berregar? Berrar muito. Estonar? Descascar. Pequice? Birra.

O que diz Fernando? Nenhuma destas, e saca um meeeeesmo. Atenção, este mesmo é diferente, acumula mais ‘e’ no Minho. É uma forma de ser. De estar. E de dizer. Quando o jornalista desta reportagem escorrega numa pedra e cai de lado, no caminho entre o hotel e o rio, por pedras enterradas em musgo e afins, o bom do Fernando preocupa-se com o nosso estado físico. Depois lembra-se da queda de outro jornalista (Nélson Marques, do Expresso) ali ao pé e só então lhe sai um meeeesmo, quando lhe perguntam em tom de picardia se é uma coincidência. 

Minhotices à parte, o relógio marca oito e meia da manhã. A malta exercita-se com vista para o rio. Fernando Pimenta fala com a dupla de argentinos, a fazer bicicleta, e mete-se com os espanhóis enquanto fala com o treinador Hélio Lucas, um senhor castiço, simpático de caras, de mochila às costas e boné na cabeça.

Pimenta pisca o olho ao desafio e lança-se ao rio sem mais demoras. Entra no caiaque com as pernas cruzadas, descruza-as já devidamente equilibrado e enfrenta o treino sem medos. Durante pouco mais de duas horas, nem o vemos (nem ao repórter fotográfico, Rodriiiiigo). Às tantas, lá aparece a dar a dar à pagaia. Esquerda, direita, encolhe a barriga e estica o peito. Estaciona o caiaque, olha para o conta-quilómetros à sua frente e diz dezoito e meio. Ya, 18,5 km. É obra. Estica as pernas e volta para o ginásio. Há exercícios com pesos e alguma bicicleta, só para desenjoar do rio. A conversa rola, na boa. Começo eu. Já fiz quatro vezes a pé Ponte de Lima-Ponte da Barca? Resposta pronta. “Oh caraças, isso é para malandros, só 16 km, ainda para mais a descer.” E eu, “ir e vir”. Pimenta olha para mim assim de esguelha, como que a tirar-me as medidas, “pronto, assim está bem, 32 km.” E o Fernando? “Faço esse caminho de bicicleta.” E continua a dar ao pedal.

“Sempre fui de água, sabes? O meu primeiro desporto foi a natação, dos 4 aos 12 anos. Nas primeiras férias escolares do século XXI, tive a primeira experiência na canoagem. Quer dizer, já tinha visto umas provas porque o meu pai é bombeiro voluntário e fez de segurança, mas o entrar na canoa e dar à pagaia só comecei em 2001. Ainda conciliei os dois desportos por um tempo, depois optei em definitivo pela canoagem.” E porquê? “Para o bem e para o mal, é um desporto diferente da maioria porque passamos por muitas paisagens, sem esquecer a diversidade do ritmo das provas entre a modalidade de rio, mar e ribeiro, na vertente de águas mexidas. Na natação, as piscinas são praticamente iguais. Aliás, as modalidades de pavilhão são quase sempre mais do mesmo.” 

Imagino o dia a dia. “Quando andava na natação, ia para a água às sete da manhã. Às vezes, chegava 10/15 minutos atrasado às aulas e os professores entendiam. Afinal, não tinha saído da cama para ir à escola, já tinha trabalhado um pouco. Com a canoagem, pouco mudou no horário. Atiro-me à água às 7h30.” Coragem. “Há dias em que custa sair da cama, até de casa, sobretudo naqueles dias mais feios, mas temos de ser mais duros do que as próprias condições atmosféricas.” O que é o pior clima de todos? “Vento e frio, dói muito e nem sinto as pontas dos dedos.”

“No início da minha aventura, em 2001, ia à água todos os dias. O primeiro inverno é a prova de fogo para sabermos se queremos continuar ou desistir.”

O ritmo da pedalada diminui à medida que a conversa aumenta de intensidade. “A canoagem é um bocadinho mais difícil do que andar de bicicleta. Se cair de bicicleta, ainda dá para puxar do pé de apoio e tentar evitar a queda. No caiaque, esquece.” Este ‘esquece’ é à minhota, tem a ver com a entoação cantada. “Se virares o boneco, só dá água. Não há outra, só splash. No início da minha aventura, em 2001, ia à água todos os dias. Por isso é que digo que o primeiro inverno é a prova de fogo para sabermos se queremos continuar ou desistir. E vi muito boa gente a desistir, alguns deles com capacidade física para a modalidade, só que a canoagem é também um desporto com valências mentais. A minha teoria é simples: por cada vez que cais à água, tens de te levantar. Vejo a queda como uma oportunidade para recomeçar; e há gente que sabe cair, mas não se sabe levantar.” Stop, pausa para pensar.

Play, avançamos na conversa. Quando é que o Fernando corre lá fora pela primeira vez? “Em 2005, no festival olímpico da juventude europeia, uma das maiores competições para os sub-16. Ganhei o ouro, em Lignano, Itália.” Brutal. Imagino o aeroporto? “Muita gente, até porque a comitiva portuguesa ganhou mais quatro medalhas de prata.” Só por curiosidade, quantas medalhas tens no total? “Cento e quatro”. Ya, 104. Então deves estar cansado de tanta receção no aeroporto, não? “Por acaso, nem temos essa visibilidade na canoagem. Ainda agora chegámos do Europeu e éramos nós que estávamos a chegar. Tudo bem que estamos a viver este momento da pandemia, mas nem um jornalista à nossa espera. A tática é a mais básica: se estiver um jornalista, porreiro; se não estiver, adiante.” Mas o aeroporto estava cheio no dia em que aterraste com a prata olímpica, certo? “Aí foi descomunal. Abriu-se aquela porta automática, a seguir à alfândega, e vi aquele poooovo todo.” Mais uma vez, muito Minho na voz. O povo é unido. “Havia gente de Ponte de Lima e também havia montes de malta que interrompeu as férias de propósito no Algarve para ir ao aeroporto do Porto.”

Quanto ganhaste com a medalha, já agora? Fernando levanta o tronco, olha em frente e ri-se. “O prémio foi 25 mil euros, um valor definido pelo Governo. Quando soubemos o valor, começámos a rir. A canoagem é um desporto individual, mas como a medalha é K2 [Fernando Pimenta faz dupla com Emanuel Silva] dividiram o prémio. É assim.” Levanta as sobrancelhas e dá ao pedal com mais força. “Até tenho vergonha de dizer lá fora quanto é que ganhámos.”

E como é que ganharam? “Por norma, costumo dormir muito bem nos dias das provas. Sei o que tenho a fazer e nada me tira o sono. Nessa manhã, nem sei se foi o dia em que o meu treinador me foi acordar à porta do quarto. Estava tão bem a dormir, ahahah. Lembro-me de que acordei super bem-disposto, tomei o pequeno-almoço, arrumei as coisas todas e fui para a pista.” O ritmo é forte, sem parar durante um quilómetro. “Quando cortámos a meta, percebemos logo que era para medalha, só não sabíamos se era ouro ou prata. Olhámos para o ecrã gigante e percebemos que foi prata por quase nada. É uma diferença que nos motiva a trabalhar mais.” Ganha a Hungria, não é? “Sim, a Hungria aposta muito forte na canoagem, como a China no ténis de mesa.”

E agora para Tóquio? “Voo para Osaka, com escala em Paris.” Em económica? “Business, porque paguei o upgrade. Para lá, digo. Para cá, nem que venha no porão. Não me interessa, só quero é voltar para casa e ver a família. Chego 15 dias antes da competição para me adaptar à humidade e calor. Ao calor já estou habituado, porque é parecido com o de cá, tenho é de me habituar à humidade.” E a aldeia olímpica? “Em 2012, a canoagem estava numa outra aldeia. Em 2016, no Rio, ainda passei uns dias na aldeia olímpica e é diferente porque cruzam-se vários estados de espírito, uns porque conseguiram alcançar os resultados, outros ficaram aquém. Seja como for, temos sempre de bloquear certas energias.” 

Por falar em energias, Pimenta fala-nos de uma determinada aprendizagem. “Em 2015–16, fiz um estágio com a equipa da Alemanha e a sinergia entre eles e a forma de pensar o trabalho é qualquer coisa. Dei um salto.” Dá mesmo. Salta da bicicleta para a banheira de pedras de gelo, nas traseiras do quarto de hotel. Quase 12 graus. O homem tremelica por todo o lado e fala de um feito extraordinário. “Ponte de Lima foi pioneira a dar canoagem como disciplina curricular no desporto escolar, por volta de 2005, 2006.” O Minho, sempre ele, a puxar por Fernando. Quando sai da banheira, o sol alentejano de Avis conforta-lhe a alma. E dá-lhe a paz necessária para a próxima medalha.