Salvador Mendes de Almeida trabalha há duas décadas na área da ação social, presidindo a Associação Salvador, que fundou em 2003, com apenas 21 anos. Hoje, é autor de dois livros, apresentador de televisão, velejador e também pai de um bebé com pouco mais de um ano. Na sede da sua associação, em Lisboa,Salvador recebeu Rita Nabeiro para uma entrevista em que falou sobre o acidente de mota que lhe mudou a vida aos 16 anos, o rumo que encontrou no trabalho e os sonhos – e lutas – ainda por concretizar.

João Lobo Antunes definiu-te da seguinte forma: Um rapaz que, com uma coragem única, se fez homem e, porque não perdeu a esperança, se salvou.” Concordas com esta afirmação?

Já não ouvia isso há algum tempo… Acho que é muito importante, quando sofremos um acidente, termos uma atitude positiva e a esperança de que as coisas podem e vão melhorar. Muitas vezes não correm exatamente como queremos, mas encararmos a vida com um espírito positivo faz a diferença.

 

É curioso que te chames Salvador. És o salvador de ti próprio ou das outras pessoas que ajudaste com a Associação nestes 20 anos?

Foi uma feliz coincidência. O trabalho da Associação tem ajudado muitas pessoas com deficiência, mas ajudou-me sobretudo a mim. Ajudou-me a encontrar um caminho e um propósito depois do acidente que tive aos 16 anos. Os meus planos não passavam nada por esta área social. Foi uma descoberta que mudou a minha vida por completo e que também tem mudado a vida de muitas pessoas com deficiência no nosso país que precisam de apoio e sensibilidade. Tem sido uma situação de ganhos – para mim e para a comunidade.

 

O acidente que tiveste mudou a tua vida. Sendo tão jovem, como foi tomar consciência do que tinha acontecido e como lidaste com a frustração? Não sei se frustração será a palavra certa…

Sim, em alguns momentos sentia frustração, cansaço, mas sobretudo sentia um grande desconhecimento. O desconhecimento também gera um sentido de aventura: lembro-me de que nos primeiros anos pensava que isto era uma coisa passageira, que rapidamente viria uma cura e que eu podia voltar a andar e fazer a minha vida como dantes. E ao princípio só conseguia mexer o pescoço. Tive fases muito intensas de fisioterapia e de recuperação, mas depois, quando a situação estabilizou e vimos que uma cura não estava para breve… Os momentos em que fiquei mais assustado, no início, foram quando fui viver sozinho para uma clínica de recuperação em Itália. Lá apercebi-me de que teria de fazer a minha vida nesta condição, dependente de terceiros para tomar banho de manhã, para ir à casa de banho, para fazer uma série de atividades. 

Salvador Mendes Correia e Rita Nabeiro

Como reagiste?

Perguntava-me como é que seria capaz de dar conta, de criar uma família. Foi assustador. Aprendi que o mais importante era viver um dia de cada vez, por fases. Foi assim que foi constituída a Associação, cinco anos depois do meu acidente. Não só para conseguirmos partilhar informações sobre tratamentos, clínicas e boas práticas, mas, sobretudo, para termos um contacto mais próximo com outras pessoas com deficiência que infelizmente não tivessem acesso às condições que eu tinha. Lembro-me de que ir para a escola, poder fazer desporto ou ir ao cinema tornou-se muito complicado depois do acidente. O que nós – eu, o meu pai e um grande amigo meu – nos disponibilizámos a fazer foi partilhar estes conhecimentos e alertar a sociedade para esta temática. Não conhecíamos muito desta realidade, porque nenhum de nós vinha do setor social.

 

O teu acidente foi de mota. Sentes, por isso, que também tens o papel de alertar para esses perigos?

Sim, logo em 2001 fui convidado para ser uma das caras da Prevenção Rodoviária Portuguesa. O meu acidente aconteceu porque estava cansado, porque tinha ingerido um bocado de álcool – não estava alcoolizado, mas ter bebido duas ou três imperiais, ter jogado futebol nesse dia, ter estado na praia, não ter descansado, etc., contribuiu para que eu adormecesse na mota. Obviamente utilizo muito esse meu exemplo para alertar. A noção que eu tinha é que as coisas más só acontecem aos outros, nunca a nós… Mas é quando menos esperamos que elas nos acontecem.

 

Criar a Associação foi uma forma de combater o desânimo?

Todos nós, na vida, temos momentos melhores e piores. Para ultrapassar os piores, é fundamental ter uma boa rede de suporte, seja familiar, seja de grandes amigos. Também ajuda ter um trabalho, um projeto, uma realização. A criação da Associação deu-me rumo. Deu um sentido maior à minha vida e um propósito diferente não só para que pudesse ter um papel ativo, como tenho, mas também para poder lutar por muitas pessoas que não têm as mesmas condições que eu. O que falta também nesta área da deficiência é falarmos a uma só voz, para que nos entendam nestes problemas das acessibilidades, da integração nas escolas e no mercado de trabalho. Agora também com a lei das quotas… Tem sido uma transformação grande, muito lenta…

Desde fevereiro que empresas com mais de 100 colaboradores passam a ter de integrar 1% de pessoas com deficiência, e a partir dos 250 colaboradores passam a ser 2%. Que impacto é que esta lei terá no tecido empresarial português e na sociedade?

Em primeiro lugar, acho triste que precisemos de uma lei de quotas. Vivemos numa sociedade que se diz inclusiva e preocupada com o outro, mas, na realidade, essa preocupação existe a uma escala muito pequena. O que tenho sentido é que essa obrigatoriedade da lei das quotas tem feito as empresas mexerem-se e terem uma maior preocupação. Funciona como o cinto de segurança: só depois de se aplicarem coimas é que as pessoas de facto começaram a utilizá-lo. Acho que temos de aproveitar esta lei das quotas, porque há cada vez mais candidatos com deficiência que querem integrar o mercado de trabalho, mas não têm condições para o fazer. 

 

O que muda do lado das empresas?

Isto vai obrigar as empresas a terem uma maior responsabilidade social e a prepararem as suas equipas e infraestruturas para receberem todo o tipo de pessoas. Felizmente temos muitas empresas que já faziam isso, como é o caso do Grupo Nabeiro. Nos últimos cinco ou seis anos, a Associação Salvador conseguiu integrar mais de 400 pessoas no mercado de trabalho, o que faz uma diferença brutal na cultura e na aceitação das próprias equipas. Diminui a sua insatisfação, porque quem lida com pessoas com deficiência aprende a relativizar melhor os seus problemas. E para as pessoas com deficiência, ter um papel ativo é fundamental.

 

Estamos melhor do que estávamos?

Sem sombra de dúvida. A lei das acessibilidades tem mais de 20 anos. Sei que está em curso uma revisão ao decreto-lei, porque o que acontece, na prática, é que não há fiscalização, muitas vezes por falta de competências para o fazer. Era fundamental haver uma “asae” das acessibilidades, porque se as pessoas souberem que não acontece nada, o que se passa na maioria das vezes é que as únicas empresas, restaurantes, hotéis que fazem essas adaptações são aquelas que já tinham uma ligação, por exemplo familiar, a alguém com deficiência. 

 

A acessibilidade ainda é um problema?

Do ponto de vista económico, existem mais de 50 milhões de pessoas com deficiência só na Europa, portanto há um potencial gigante nestas adaptações e em criar acessibilidade. Infelizmente ainda vemos muitos locais que não as têm. Eu moro em Lisboa e já aconteceu ver passadeiras que estavam rebaixadas ao nível do pavimento e, depois de uma intervenção, por falta de conhecimento do técnico, ficarem com quatro centímetros de degrau. Isso impede uma pessoa com deficiência ou mobilidade reduzida de fazer o seu dia a dia. Esta sensibilização é muito importante.

“Perguntava-me como é que eu seria capaz de dar conta, de criar uma família. Às vezes quando fazemos planos para uma vida inteira, ficamos assustados. Aprendi que o mais importante era viver um dia de cada vez, por fases. Foi assim que foi constituída a Associação, cinco anos depois do meu acidente.”

A deficiência parece continuar a ser um tema desconfortável. Já sentiste preconceito?

Diria que não é tanto preconceito, mas desconhecimento. Ao início, pode haver pouco à-vontade de quem nunca tenha lidado com alguém com deficiência, mas também parte da pessoa com deficiência ajudar a desconstruir esse preconceito: se falarmos de igual para igual com as outras pessoas e se explicarmos, as coisas tornam-se normais.

 

A sensibilização passa por nos pormos no lugar do outro. Que tipo de trabalho tem feito a Associação Salvador nesse sentido?

Gostava de partilhar uma grande conquista, que foi em outubro de 2022 termos conseguido inaugurar o Dia Nacional das Acessibilidades, decretado pela Assembleia da República, a partir de uma petição que a Associação fez. Outro marco histórico da Associação é a iniciativa Ação Qualidade de Vida, para a qual a Delta contribui todos os anos. Atribuímos apoios concretos que o Estado não dá, como por exemplo obras em casa, pelas quais se pode estar quatro, cinco anos à espera do apoio do Estado, ou apoios nas áreas da empregabilidade e do desporto adaptado. Esta iniciativa tem já 15 anos, durante os quais apoiámos mais de 600 pessoas com uma verba superior a um 1,7 milhões de euros. São grandes conquistas da Associação.

Tem havido campanhas muito marcantes e que sensibilizam. Lembro-me de uma sobre o estacionamento. O facto de seres formado em Marketing e Publicidade é uma mais-valia?

Sem dúvida. Felizmente temos tido diversas empresas a colaborar. Sabíamos que para fazer a diferença na sociedade, tínhamos de ter uma comunicação e uma presença aguerrida, mas com um tom positivo. Às vezes é difícil, mas tem de ser. Essa campanha teve um ótimo impacto. Muitas vezes as pessoas não têm noção, mas estacionar num lugar de pessoas com deficiência… Dizem que é só dois minutos, que está a chover muito, que não vão demorar nada, mas conheço imensas famílias que para saírem de casa demoram uma hora – desde sair da cama e entrar para a cadeira, vestir, despir, passar da cadeira para o carro. Chegam a um local onde iam fazer fisioterapia ou iam a um convívio e veem o lugar que supostamente estava reservado, ocupado… É um desrespeito enorme. Cria revolta e pouca vontade de sair de casa. “A sociedade não me respeita, não tenho condições, isto não vale a pena.” Temos de combater isso. O convite que faço aqui é sermos nós, pessoas com deficiência, e os nossos familiares, a exigir mais respeito. Muitas vezes as pessoas não têm noção.

 

 

Tu és um otimista, o que é muito inspirador e muito importante, mas há quem possa cair no extremo oposto. Que conselhos dás a essas pessoas para não se entregarem ao desespero?

Também tenho momentos em que estou farto de me queixar e farto de sensibilizar, em que também me apetece ir jantar fora ou ir na rua e não fazer nada, não falar com ninguém sobre acessibilidades, porque já levo com isto há muitos anos. Mas sei que é importante. Obviamente se estamos num dia pior, se estamos mais cansados, se estamos com alguém que faz uma certa cerimónia – há momentos para tudo, temos de saber dosear. Há lutas que vale a pena ter, mas há dias em que não vale a pena e em que temos de estar mais recolhidos. O que conta na vida é o balanço geral. Se as nossas ações forem construtivas e persistentes, se sentirmos que não estamos sozinhos, que temos uma família, amigos, que estamos a reclamar por uma coisa que é válida… O segredo é esse equilíbrio. Nem estar sempre a reclamar, nem deixar de alertar sobre estes temas.

 

Sentes que esse apoio de amigos e família também te ajudou a seres a pessoa que és hoje e a ultrapassar estes obstáculos?

Sem dúvida, mas o mais importante é aquilo que nós somos, sentimos e temos capacidade para fazer. É fundamental ter esta cultura de acreditar e esta confiança que se vai construindo. Há momentos mais difíceis, mas é muito importante não deixarmos de acreditar que podemos fazer a diferença na nossa vida e na de quem está à nossa volta. Tenho-o aprendido com as pessoas com deficiência que tenho acompanhado, e que me dão imensa força nos momentos em que estou mais em baixo. É a esta partilha com os outros que…

 

Que vais buscar força?

É sobretudo aí. Mas também à minha família: a minha mãe, a minha irmã, a minha mulher, os meus amigos. Se estamos rodeados de pessoas positivas que nos ajudam, que sabem que vamos conseguir dar a volta, isso faz toda a diferença.

 

 

Como é que lidas com as pessoas que se queixam de coisas pequeninas, por comparação com quem tem problemas muito mais complexos?

Não lido, desligo, porque sei que me vou irritar injustamente. Cada um é como é e tem direito a queixar-se das várias situações. Acho que há lutas e queixas que valem a pena, e outras que não. Mas respondendo mais diretamente, tenho uma certa dificuldade em lidar com isso. Tento não ligar e que não ocupe muito do meu tempo.

 

Como funciona a Associação? Quem quiser contribuir, de que forma o pode fazer?

Tem sido um percurso muito desafiante, de realização profissional e pessoal, para mim e para toda a equipa. Desde 2003 já tocámos a vida de mais de 4500 pessoas com 10 projetos. Já tivemos cerca de 1800 voluntários a acompanhar-nos. Os próximos tempos vão ser desafiantes, e ficaria muito contente se a Associação pudesse contribuir de forma mais incisiva para a criação de melhores planos de acessibilidades nas nossas autarquias, porque, como dizia há pouco, a lei das acessibilidades tem 20 anos. É um tema que toca em todas as áreas que trabalhamos: do desporto à empregabilidade, à sensibilização em escolas, à investigação e à tecnologia. Sem acessibilidades, as pessoas com deficiência não conseguem sair de casa e ter um papel ativo.

 

O que é que se pode fazer na prática para contribuir para a mudança?

Ter atenção, pormo-nos no lugar da outra pessoa. Seja na escola do nosso filho, seja no trabalho, seja quando vou ao supermercado e não estaciono no lugar das pessoas com deficiência, seja contribuir com horas de voluntariado para uma instituição de solidariedade social. Na Associação, temos diversos projetos a que as pessoas se podem associar. A consignação do irs é um tema muito importante, porque todas as pessoas podem contribuir com 0,05% do seu irs sem lhes ser retirado nenhum benefício, pondo a cruzinha na instituição de solidariedade com que têm maior ligação. Mas no geral, é envolverem-se com as comunidades onde estão inseridas e estarem atentas às necessidades do próximo.

 

Uma associação não gera lucros, mas precisa de fundos. Quais são os principais desafios nessa gestão?

Uma das nossas grandes preocupações é a sustentabilidade da Associação. Estamos muito agradecidos a todas as empresas que nos apoiam, mas temos feito um trabalho de diversificação e, cada vez mais, temos um conjunto de doadores regulares. São pessoas individuais que contribuem com valores desde 6€ por mês. Já temos mais de 4000 pessoas unidas à nossa causa. E convido todos os que puderem a juntarem-se a nós. É muito importante, porque é na diversificação da fonte de receitas que conseguimos ter sustentabilidade.

 

 

“Também tenho momentos em que estou farto de me queixar e farto de sensibilizar, em que também me apetece ir jantar fora ou ir na rua e não fazer nada, não falar com ninguém sobre acessibilidades, porque já levo com isto há muitos anos. Mas sei que é importante.”

O que achas que falta para que exista uma verdadeira inclusão e diversidade também a nível empresarial?

De forma geral, falta uma mudança de mentalidades. As pessoas com deficiência são cada vez mais bem aceites na sociedade, mas ainda existe muita discriminação e um grande desconhecimento. As mudanças concretas nas autarquias, nas escolas, em tudo isso, é o que vai fazer a diferença e vai criar um país cada vez mais inclusivo. Diria que os portugueses em geral são supersimpáticos e sensíveis, mas nesta questão da deficiência temos de ser mais rápidos, porque ainda existe muita discriminação e muitas pessoas com deficiência fechadas em casa, que não conseguem entrar no mercado de trabalho, ir à escola, fazer desporto adaptado.

 

O que é que ainda te falta alcançar, que sonhos tens por concretizar?

Sobretudo esta questão das acessibilidades. Gostava de trabalhar mais a fundo com uma ou duas autarquias do nosso país para implementar zonas modelo que pudessem servir para outras autarquias e cidades poderem replicar o projeto. Todas as autarquias do país deviam ter um orçamento anual para a implementação destas acessibilidades. Com situações avulso de pôr uma rampinha ali e pôr uma rampinha acolá, ou de ajudar uma pessoa pontualmente que teve um acidente, é muito difícil mudarmos o nosso país e torná-lo acessível. Essa é uma das coisas que me falta fazer. Obviamente, agora que fui pai, um dos meus grandes objetivos é poder acompanhar a minha família, e crescer enquanto pessoa e enquanto cidadão.

 

 

Para lá da Associação Salvador, o que mais te define? Quem é o Salvador?

Uma pessoa simples, amiga do seu amigo. Apesar de ter uma certa reputação, sou uma pessoa algo reservada, gosto da minha intimidade. Sou alegre, feliz, persistente naquilo que quero alcançar.

 

Olhando para trás, há algum conselho que darias ao jovem Salvador?

Para ter um bocadinho mais de calma, que as coisas na vida vão acontecendo por si próprias. Às vezes temos pressa para que as coisas aconteçam. Houve muitas situações que não consegui saborear da melhor forma, porque foi tudo a correr. Hoje percebo que é importante termos tempo para os nossos amigos, para a nossa família, que a vida passa muito rápido e às vezes só quando acontecem situações mais difíceis é que nos apercebemos disso. Ter alguma calma e saber aproveitar todos os momentos é o mais importante. E um sentimento de agradecimento por todas as pessoas que tive a sorte de conhecer e que vão tocando a minha vida.