É difícil para Pedro Cardoso apontar o momento exato em que o Solar dos Presuntos se transformou numa das referências gastronómicas de Lisboa. Com modéstia, mas sem desvalorizar, vai relativizando – como sempre fazemos com o que nos é próximo. Pedro, 57 anos, cresceu no restaurante e cedo se habituou à excelência da comida, do ambiente e da simpatia com que o pai – Evaristo, falecido em 2022, aos 80 anos – cativava e alimentava as amizades com figuras públicas nacionais e internacionais. Artistas, desportistas e políticos de passagem por Lisboa não deixavam passar a oportunidade de ir ao Solar dos Presuntos – como o demonstram as paredes carregadas de fotografias.
Jantares secretos para a rainha Sofia de Espanha e refeições servidas no jato privado de David Beckham ou no quarto de hotel de Adele são já situações corriqueiras no Solar dos Presuntos. E pensar que um restaurante que hoje serve mais de 700 refeições por dia começou como uma pequena tasca que nem sequer tinha despensa, fundada há 50 anos por três minhotos: Evaristo Cardoso, a esposa Graça e o irmão Manuel.
Graça e Evaristo rumaram da aldeia minhota de Monção a Lisboa muito novos. Primeiro foi Graça, então com 10 anos, a ir viver com uma tia, a fadista Márcia Condessa, e a trabalhar na sua casa de fados. Mais tarde, em 1954, foi a vez de Evaristo, então com 12 anos, viajar até Lisboa. Fez a viagem sozinho, foi morar com um tio e iniciou um percurso a trabalhar em restaurantes e cervejarias, chegando à gerência de algumas casas.
Evaristo e Graça casam-se em 1963. Em 1974, compram uma taberna na rua das Portas de Santo Antão, em Lisboa, que vendia presuntos e vinho a copo, e decidem manter o nome – O Solar dos Presuntos – por se adequar à ideia que tinham para o estabelecimento. Mantiveram o nome, mas acrescentaram um reclame a dizer “Alta Cozinha de Monção” que ainda hoje perdura.
O novo Solar dos Presuntos abriu a 30 de outubro de 1974, apenas com uma pequena sala, com cerca de 20 lugares distribuídos entre as mesas e o balcão. Graça Cardoso cozinhava, Evaristo servia às mesas e a atender o balcão estava José Silva, o primeiro funcionário que ainda hoje, passados 50 anos, continua a servir no Solar dos Presuntos, onde é responsável também por receber o peixe e o marisco.
“O restaurante correu bem desde o início, mas aquilo era trabalhar até dizer chega. O dia todo, até tarde, e depois recomeçar outra vez no dia seguinte. Eu estava na cozinha. Era a cozinheira, lavava a loiça, fazia tudo”, recorda Graça Cardoso, 84 anos. “Quando começámos, nem sequer tínhamos despensa.” A operação era complicada. Como não havia lugar para armazenar o stock, Evaristo e Graça chegavam de manhã, punham tudo no exterior, à porta do restaurante, e preparavam a sala para o almoço. “No final, voltávamos a pôr tudo dentro, era uma trabalheira tremenda.”
Os comendadores
O café é Delta desde o primeiro dia. O que equivale a dizer que é Delta há mais de 50 anos. Já se sabe que Rui Nabeiro tinha como mote “Um cliente, um Amigo”. Mas não era só só algo que dizia, também o praticava. “O Senhor Rui vinha cá muitas vezes, e nesses dias era sempre um amigo que vinha”, recorda Graça sobre o fornecedor mais antigo da casa. A família Cardoso chegou a ir a Campo Maior visitar a fábrica e assistir a um jogo de futebol do Campomaiorense. “Nunca discutimos um preço que fosse, e na altura do Natal tinha sempre o cuidado de ligar.” A ligação especial entre as duas famílias foi eternizada no largo da Anunciada, num mural de homenagem a Rui Nabeiro e Evaristo Cardoso, inaugurado na festa do 50.º aniversário do Solar dos Presuntos.
Em 2022, poucos meses antes de morrer, Evaristo Cardoso foi condecorado pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, com a comenda da Ordem do Mérito Empresarial e Comercial. “O Senhor Rui dizia para o meu marido: já viu, nós não fomos para a universidade e somos os dois comendadores!”
O destino do Solar dos Presuntos está hoje entregue a Pedro, um dos dois filhos do casal Cardoso, que já tem a sua filha mais velha, Carolina, envolvida no dia a dia do restaurante. “Ele não queria vir para aqui, porque via que a gente trabalhava muito, que os dias eram longos e que na altura não se ganhava muito”, recorda Graça. “Eu via a forma alucinante com que eles viviam o restaurante”, conta Pedro. “Para quem não gosta disto, um restaurante pode ser uma prisão. Na altura, isto não me dizia nada.” Mas por volta de 1984 deu-se um clique e Pedro começou a marcar presença no dia a dia do restaurante, começou a aprender.
“Isto tudo foi construído ao longo dos anos, com muita dedicação por parte dos meus pais. Sempre com alguém da família presente no restaurante. Esse é que foi o grande segredo – identidade e forma de estar – para os meus pais terem conseguido transformar uma coisa normal em algo perfeitamente anormal.” Pedro exemplifica com os menus do restaurante, que existiam apenas “como pró-forma”, porque “sentavas-te à mesa e o meu pai inventava sempre um petisco qualquer para comer”.
Evaristo apostava na qualidade do produto. Era frequente sair do Solar dos Presuntos pelas 22h e ir até Monção para se abastecer das melhores carnes, enchidos e vinhos (da região do Vinho Verde). A casa foi crescendo e a variedade da ementa aumentando, com pratos que ainda hoje fazem as delícias dos clientes, como o bacalhau assado no forno ou o arroz de lavagante ou o sempre sazonal arroz de lampreia. Na altura, Evaristo trazia do Minho as lampreias “em bidões com água de Monção”, lembra Graça Cardoso, que lamenta, porém, o preço a que a matéria-prima chegou no ano passado: “E já me disse a senhora [a fornecedora] que este ano ainda vai haver menos lampreia do que no ano passado, quando cada peça já custava 120 euros.”
Com o aumento da clientela, foi preciso ampliar o espaço, o que se conseguiu com a aquisição do prédio e as primeiras obras, transferindo a cozinha da montra para a zona atual, melhorando as condições e abrindo ao público uma sala no primeiro andar.
Golo!
Continua a ser difícil apontar o exato momento em que o Solar dos Presuntos se tornou um dos ex-líbris gastronómicos de Lisboa, mas, para Pedro, há um evento-chave que traça uma linha que separa o antes do depois: 1986. Nesse ano, Evaristo foi convidado para ser o cozinheiro da seleção nacional de futebol que disputou o Campeonato do Mundo no México. Apesar do insucesso dentro das quatro linhas (e de algumas confusões fora delas), Evaristo aproveitou a oportunidade para cultivar uma relação de proximidade com os jogadores. “O meu pai sabia que o Fernando Gomes gostava do bife mal passado e que o outro gostava dele bem passado. Hoje, os almoços são buffet, já quase não há interação entre cozinheiros e jogadores.”
Os pratos mais afamados do Solar dos Presuntos mantêm-se na carta há décadas: do Bacalhau Assado no Forno ao Arroz de Lavagante, sem esquecer o sempre sazonal Arroz de Lampreia.
Com a ida ao Mundial, o Solar dos Presuntos ganhou uma presença mediática que até então não tinha. “Lembro-me de que sempre que saía uma notícia no jornal, vinham logo mais clientes no dia seguinte.” E se já era o restaurante dos artistas – pela proximidade do Parque Mayer, do Teatro Politeama, do Bairro Alto, e também pela proximidade que a família Cardoso sempre manteve com os clientes regulares –, depressa se tornou igualmente uma referência para jogadores, treinadores, dirigentes e empresários do futebol.
Em 2021, o Solar dos Presuntos reabriu, depois de um período de obras, com uma nova esplanada embelezada por um mural de Vhils, uma cozinha de 400 metros quadrados – liderada pelo chef Hugo Araújo – e o dobro da lotação. As salas de refeição foram remodeladas e fez-se uma sala privada que pode ser reservada para pequenos eventos ou ocasiões especiais, como provas de vinhos. É aí que fica uma impressionante garrafeira fechada dentro de um cofre envidraçado. Ao todo, o restaurante, que emprega 140 pessoas e que serve em média 700 refeições por dia, passou a dispor de 240 lugares sentados.
Ainda mal refeito da grande festa dos 50 anos do Solar dos Presuntos, que levou mais de 2500 pessoas ao largo da Anunciada, em frente ao restaurante, Pedro já pensa na próxima: “Fico orgulhoso só de pensar que daqui a 50 anos se vai celebrar o centenário do restaurante, se Deus quiser, já com o meu neto à frente da casa.”