Basta um pouco de criatividade e vontade de inovar para criar negócios e projetos verdadeiramente sustentáveis, circulares, que não só respeitam o ambiente como o ajudam a regenerar-se. Os exemplos que se seguem, dentro e fora da Delta, são prova disso mesmo.
Matter. A alquimia da sustentabilidade
Uma inovadora startup portuense dá aos desperdícios de produtos essenciais, como café, chocolate, azeite e vinho, uma nova vida na arquitetura, no design e nas embalagens. Além da Delta também a IKEA, Louis Vuitton e Chanel já se deixaram conquistar pela Matter.
Na Idade Média, os nossos antepassados depositaram na Alquimia todas as esperanças para realizar o sonho de transformar metais comuns em ouro. Muitos séculos depois, há apenas 41 anos, nasceu Ana Lima, arquiteta que decidiu estudar também engenharia bioquímica com o objetivo de transformar desperdícios no que, para si, é ouro: os materiais.
É esse o mote da Matter, uma startup sediada no Porto que aproveita resíduos de produção de café, chocolate, azeite e vinho, e transforma-os em produtos de valor acrescentado, com aplicações na arquitetura, nas embalagens ou no design. A seleção teve em conta os produtos “que consumimos no nosso dia a dia e que têm a ver com a nossa cultura”, explica Ana, que começou a sua investigação em 2012.
“Sempre fui completamente apaixonada por materiais”, assume.
Depois de um amigo lhe ter mostrado resíduos de azeite que iam para o lixo, Ana decidiu avançar para um doutoramento com o objetivo de estudar uma forma de evitar os desperdícios, de preferência criando, ao mesmo tempo, matéria mais original para aplicar na arquitetura. Hoje, a Matter cria painéis de revestimento de diferentes cores, formas, texturas e aromas, que podem ser aplicados na construção e na decoração, em pisos, paredes ou tetos, por exemplo. “Estamos a criar uma marca própria de mobiliário e de design”, adianta, na sequência da vitória no concurso “INOVDESIGN” da Fundação de Serralves, em 2018.
Mas não só. Quando, em 2019, ouviu falar do programa DisrUPtion, do Grupo Nabeiro, concorreu com o objetivo de estudar os resíduos da Delta, desde a cascarilha que se solta no processo de torrefação do café ao papel de filtro que se encontra nas cápsulas. “Moldar os materiais está-nos a abrir possibilidades muito interessantes. Os troféus comemorativos dos 60 anos da Delta, por exemplo, são feitos com resíduos da torrefação.”
As distinções nacionais e internacionais têm marcado o percurso desta startup, o que se traduz em convites para trabalhar com algumas das maiores marcas do mundo. O primeiro prémio que ganharam foi em Espanha, ainda a Matter não era, oficialmente, uma empresa. “Desde aí, nunca deixámos de ter um pé lá fora.” Em plena pandemia, foram finalistas do LVMH Innovation Award, da gigante Louis Vuitton, o que lhes valeu um convite para a Maison des Startups, em Paris. Durante seis meses, estiveram em contacto com diferentes empresas, como as da indústria do champanhe, e estão atualmente a explorar parcerias com quatro marcas. Antes, já tinham sido contactados pela Chanel. “Souberam que estávamos a trabalhar com resíduos de vinho e, para um evento de lançamento da sua coleção de vinhos, em Tóquio, usaram como suporte o material que nós fazemos com engaço.”
Em 2017, a Matter foi uma das dez startups a nível mundial selecionadas para um programa da IKEA, na Suécia. Os três meses de investigação renderam “várias conclusões e um enriquecimento muito grande para o dia a dia da Matter”, recorda Ana Lima. Uma dessas conclusões prende-se com a escala. “Queremos estar onde os resíduos estão, mas em pequenas fábricas, não em grandes multinacionais”, onde sentem que podem começar a fazer a mudança de que o mundo precisa. “Quando fiz a imersão pelos resíduos é que me apercebi da loucura que o mundo vive: é inacreditável a quantidade de recursos virgens que utilizamos, sem sentido nenhum, porque há um universo de matéria que pode ser reutilizada. O planeta é só um e tem de haver abertura por parte das indústrias para mudar os procedimentos.”
Cucumbi. O hotel das raças autóctones
O sonho de tozé e catarina frança é criar um oásis no alto alentejo com muita água, raças portuguesas em vias de desaparecer e agricultura biológica que torne este turismo rural autossuficiente. Deem-lhes 25 anos que a coisa faz-se.
Aqui, os turistas têm alojamento confortável, é certo, mas os animais levam tratamento de luxo. “As minhas ovelhas [merina branca e preta] ouvem música clássica”, atira Tozé França. Os galinheiros, onde vivem pedrês, raça amarela, branca e preta Lusitânica, têm um sistema de tratamentos de águas, uma espécie de ETAR privativa, além de quatro revestimentos térmicos no telhado. “O meu sonho é fazer um templo para as raças autóctones portuguesas”, justifica este recente agricultor. Se o turismo rural Cucumbi é um altar, com estes deuses e santos a passear livremente num terreno com 31 parques diferentes, aos turistas cabe relaxar e adorar as divindades.
Catarina França, a mulher, continua a dizer que pertence à cidade – talvez seja a força de quatro décadas a viver urbanamente. Mas logo olha à sua volta e concede: agora é no meio dos pomares, das galinhas e dos dois burros de Miranda que está e gosta de estar. A ideia de comprar a quinta ao pai de Catarina foi de Tozé. “A família não sabia de nada, e eu já andava a negociar com o meu sogro”, ri-se como quem se orgulha de um plano velhaco, mas bem-sucedido.
Desenhar o projeto de uma agrofloresta no Alto Alentejo não é barato, avisa o casal à frente desta quinta biológica. Há um certo “empobrecer alegremente”, sobretudo quando se está a plantar para o futuro. As trezentas árvores plantadas (entre elas sobreiros e árvores de fruto) só vão dar sombra aos netos, a agricultura biológica tem os seus riscos e perdas, e as raças autóctones não são tão produtivas como as outras. A isto junta-se um ambicioso plano de fazer desta herdade um oásis dentro de 25 anos.
Do terraço onde se servem as refeições aos hóspedes, Tozé estica o braço para um vale: “Ali vai ser uma das charcas”, anuncia e garante que vão pontuar o terreno por todo o lado. À direita dos edifícios, entre os vales da propriedade, já existe uma para amostra. “É preciso perceber a terra. Temos ali uma estrada que tem de ser limpa todos os anos”, continua este homem que passou os últimos anos em negócios entre Portugal e Angola, nenhum relacionado com o campo.
“O terreno não quer a estrada ali, com este projeto [de design regenerativo] já sabemos por onde é que a estrada tem de passar e se calhar assim não vamos precisar de andar sempre a limpá-la.”
O investimento da família vai-se equilibrando com o alojamento a turistas. As obras para os quatro quartos e três apartamentos mantiveram o edifício das casas de agricultores da cooperativa que aqui funcionou até aos anos 2000. Muitos dos que vivem na aldeia, ao fundo da rua, nasceram aqui, e para Tozé e Catarina a ligação à comunidade faz parte da ideia de sustentabilidade. “Quando chegámos aqui, em junho de 2019, inscrevi-me logo na sociedade recreativa”, conta Tozé. Foi bom para conhecer algumas das pessoas que hoje trabalham na Cucumbi: Custódia só trata das galinhas; Gregório está na horta; Luís, com as ovelhas.
O casal e os filhos vão aos poucos sendo absorvidos pelo campo, mas ainda precisam destes guias. “No primeiro ano”, lembra Tozé, “ sentia-me um analfabeto. Andava atrás do pastor a ver como fazia.” Há tempo para continuar a aprender, que o trabalho do campo são 365 dias por ano.
Delta × Prio × Ecobean. Onde há fumo há borras de café
O desperdício de café pode transformar-se em energia. Para o grande público, a parte mais visível da parceria destas três empresas serão os briquetes, mas este trabalho quer ir mais além e transformar café usado em biodiesel.
As dúvidas são legítimas. O café não pertencia até agora ao universo da grelha e de um churrasco, mas Marcin Koziorowski garante que ninguém vai comer carne com aroma a café. Depois de ter sido servido com e sem princípio, nas chávenas da bica e do abatanado, frias ou escaldadas, as borras do café Delta dão corpo a briquetes para churrasco, num projeto-piloto da Prio com a Ecobean, empresa polaca que tem por missão dar-lhes uma nova vida.
O tão apreciado cheiro a fumado numa carne ou em legumes grelhados não foi deixado de fora da fórmula de criação da receita destes briquetes. São 80 por cento de borras de café e 20 por cento de resíduos de madeira com um composto aglomerante de origem natural. A estrela são as borras que vivem assim a sua segunda vida, mas só “o nariz de um sommelier muito experiente poderia notar as notas de café” ao acender o lume, afiança Marcin, CEO da Ecobean.
Em alternativa a um carvão vegetal – que implica maiores emissões de dióxido de carbono –, estes briquetes prometem produzir mais calor e durante mais tempo, tudo por causa dos óleos do café. “Estamos sempre à procura de soluções mais sustentáveis através, por exemplo, da maior incorporação de óleos extraídos de matérias-primas residuais e há muito tempo que sabíamos que há óleos que podem ser extraídos do café.”, conta Emanuel Proença, administrador da Prio. A marca de Aveiro é conhecida pelos postos de abastecimento, mas boa parte da sua ação está na conversão de óleos que seriam lançados na natureza em biodiesel. E qualquer óleo tem potencial para isso: a Prio já recolhe óleos alimentares ou das indústrias agropecuárias e, neste momento em que se sabe que o futuro não são os combustíveis fósseis, há que investigar mais fundo. É dessa prospeção que nasce a relação da Prio com a Ecobean, e ambos afiançam: as grelhas e lareiras que estas borras de café vão acender são só a ponta do icebergue.
“Estamos a recolher toda a informação sobre como adicionar o óleo do café na produção de biodiesel para mais tarde tentar industrializar o processo”, explica Emanuel. Marcin não tem dúvidas do potencial desta e de outras matérias-primas:
“Valorizamos 100% das borras de café em óleo e briquetes e temos ainda, em fase de desenvolvimento, a valorização da fração sólida em outros produtos de maior valor comercial”.
A Delta junta-se a este casamento pela sua omnipresença no universo do café em Portugal e pela visão que tem sobre a sustentabilidade. Nos postos da Prio já se usava o café Delta e por isso a ligação foi natural, contam Dinis Cunha [Diretor de Vendas dos Mercados Internacionais] e Maria Miguel [Gestora de Projetos] que, entre Lisboa e Campo Maior, continuam envolvidos neste piloto. Para já, faz-se a recolha de borras de café de clientes e da própria empresa em seis postos da Prio em Lisboa, os mesmos onde estarão à venda este verão as primeiras embalagens de briquetes, ainda como teste para perceber a aceitação do público. E o público gosta de café. “Apesar de Portugal ter ¼ da população da Polonia, tem o dobro do consumo de café per capita.”, diz Marcin, que sonha com uma biorrefinaria de café em Portugal: “Reciclar todas as borras de café da Delta: isso é que era um sonho”.
Porcus Natura. Os porcos que vêm da erva
Na Herdade de São Luís, em Montemor-o-Novo, há duas gerações que se revoluciona a criação de porco alentejano. Graças à técnica de maneio regenerativo, a pecuária ali praticada está cada vez mais amiga do ambiente.
Nos seus 700 hectares de terreno, Francisco Alves tem 4 mil porcos, mas apresenta-se como produtor de erva. Enquanto o campo anda verdejante e a erva cresce independente, sem precisar de sementeiras, está tudo bem na Herdade de São Luís, perto de Montemor-o-Novo. É o melhor sinal de que os solos estão fortes, e de que a fatura com o ambiente, entre a carne que se produz, os gases emitidos e o carbono que a vegetação aprisiona, fica saldada. É esta a filosofia do maneio regenerativo que, na Porcus Natura, dá origem a alguma da melhor carne de porco alentejano do país.
Assim que recebe alguém na herdade, Francisco encaminha as visitas para o seu orgulho: as maternidades de leitões. São a herança de outro Francisco Alves, o seu pai, que pensou há 20 anos estas estruturas únicas, ainda hoje visitadas por gente da área, como exemplo de bem-estar animal.
Cada porca e a sua ninhada de seis ou sete filhotes tem uma espécie de quintal privado, com uma casa à sombra para dormirem. “O meu pai foi percebendo que se ficassem num espaço pequeno, rapidamente o terreno ficava gasto”, conta Francisco. Agora há espaço suficiente para os leitões correrem vigiados pela mãe, que chega aqui nas últimas semanas de gestação. Ela alimenta-se da erva e nos picos da exaustão tem um comedouro com cereais.
E o cansaço não deve ser pouco. Quando querem mamar, correm todos juntos contra ela e é impossível perceber se a atiram ao tapete ou se ela simplesmente reconhece a inutilidade de resistir e se deita. “O da mama de trás é sempre o mais magrinho”, refere Francisco, enquanto aponta para o mais franzino. Ainda tem dois meses para engordar e preparar-se para os passeios de campo em campo, correndo todas as pastagens, até chegar à última para uma alimentação de bolota que fará a diferença reconhecida nesta carne: grande infiltração de gordura nos músculos e níveis de ácido oleico – a dita gordura boa – superior à do azeite, garante o produtor.
Depois do trabalho revolucionário do pai, o filho também deixa a sua marca. Há uns cinco anos, cruzou-se pela primeira vez com o maneio holístico e regenerativo. A ideia é que os animais sejam os lavradores e agricultores da própria terra. Como cada animal tem uma função diferente, na Herdade de São Luís também existem vacas, ovelhas merina e cabras serpentina.
Os porcos vão andando de terreno em terreno, remexendo a terra, “têm o instinto natural de fuçar”, evitando o arar mecânico, que quebra a estrutura do solo; tal como as vacas, comem uma primeira camada de erva, e são levados para outro campo antes de comerem a segunda, para que possa florir, dar semente e crescer novamente. As ovelhas comem erva seca ou, como diz Francisco, transformam erva seca em quilos de carne, enquanto as cabras fazem o favor de comer mais ou menos qualquer coisa e ajudar a limpar os terrenos.
Nestas viagens pelo montado, os animais vão adubando a terra, o que acontece por evitarem as desparasitações e pesticidas químicos. “Só tratamos um animal quando percebemos que está doente. Muitos desparasitam-nos todos os anos, por rotina, mas isso destrói a flora intestinal dos bichos, deixam de produzir biomassa produtiva”, explica Francisco. O montado e o porco alentejano têm, como se vê, a situação sob controlo. Não é preciso inventar muito.
Delta Évora. Uma powerbank gigante
Do Alentejo chegam notícias do futuro: vai ser possível trabalhar com uma frota inteiramente elétrica, gerar energia para a carregar, para alimentar um departamento e, pelo caminho, ainda dar mais dez anos de vida a baterias de lítio usadas previamente em automóveis.
Há tanto sol em Évora que a atividade diária do departamento local da Delta não é capaz de consumir toda a energia que produz num só dia. Metade do telhado está coberto por painéis solares e, nos lugares de estacionamento, avista-se uma frota 100% elétrica. De cima, percebe-se melhor porque é que este departamento é raro: na zona industrial da cidade alentejana, os painéis solares ainda são coberturas invulgares. E no universo Delta, esta ainda é – para já – a única frota automóvel movida totalmente a energia limpa.
Mas mais extraordinário do que isto são os dois singelos móveis arrumados nos armazéns das instalações: estão cheios de baterias antigas de automóveis elétricos que armazenam o excesso de energia produzido pelos painéis solares. É uma solução inovadora que contribui para a eficiência energética do edifício, para a redução de custos e dá uma mãozinha numa potencial resolução para o problema de produção das baterias de lítio.
“Surgiu o desafio de eletrificar toda a frota, mas, mesmo com todos estes painéis, o consumo [de eletricidade da rede] estava a crescer significativamente”, explica Nuno Damião, responsável pela equipa de estratégia e desenvolvimento. A opção pelos elétricos neste distrito foi prova de fogo, por causa das grandes distâncias a percorrer até aos clientes. Confirmou-se que é possível usar automóveis 100% elétricos se houver uma boa gestão e, por isso, a empresa começou a oferecer cursos de ecocondução – até para quem não tem um elétrico. “O importante é mudar a nossa mentalidade”, diz o coordenador.
O equilíbrio entre a energia gerada e os consumos e carregamentos de automóveis e empilhadoras envolve fatores como as horas de maior sol ou o número de carregadores. Mesmo com uma gestão cuidadosa, era muita a eletricidade solar que, não sendo consumida nas horas de picos de luz, era desperdiçada ou vendida à rede a valores simbólicos. “A ideia foi guardar esta energia numa powerbank para usar mais tarde”, simplifica Nuno Damião. Lançaram o repto à Zeev, que trabalha soluções de mobilidade elétrica, e à BMW, de onde vieram baterias de lítio usadas.
“É incrível que estas baterias possam ter, pelo menos, mais dez anos de vida aqui”, impressiona-se Duarte Azinheira, diretor de departamento, junto ao móvel com capacidade para 40 quilowatts que alimenta o edifício – a utilização de energia da rede é já minoritária. A exploração do lítio, o reduzido tempo de vida das baterias em automóveis e o seu descarte na natureza são o lado problemático da energia elétrica, e qualquer solução que alargue o tempo de vida destas peças torna o saldo ambiental mais positivo.
No armazém do departamento, facilmente passam despercebidas, mas estas caixas mudaram o ritmo da Delta em Évora. Num ecrã no seu gabinete, Duarte vê em tempo real a produção de energia e que eletricidade está a alimentar os consumos. Foi a partir daí que pediu mudanças nos hábitos de todos os dias. “Agora carregamos as empilhadoras de noite, aproveitando a energia armazenada e os carros, à hora do almoço, quando há menos consumo [no armazém nos escritórios] e um pico de sol”, exemplifica. A essa hora, até parecem faltar baterias para tanta generosidade do sol de Évora.
Naturhortas. O Airbnb das hortas
Com o início da pandemia, um casal de Sintra largou o acessório e dedicou-se ao que será sempre essencial: vegetais cultivados sem agroquímicos. Contagiaram os vizinhos e hoje gerem uma rede de micro-hortas no distrito de Lisboa.
O trabalho revelava-se perfeito para quem gosta de caracoletas – não era, no entanto, o caso deste casal. Certa madrugada, em que elas andaram de tal forma que ninguém podia acusá-las de lentidão, Rui e Marília apanharam no seu quintal cinco quilos, um recorde. “Se não anda por aí um caracol, uma lagarta, alguma coisa não está bem”, diz Marília. Pedir uma lagarta como certificado de horta mais do que biológica é uma coisa; outra, bem diferente, são cinco quilos de gastrópodes a tentar roer numa noite a produção de semanas. A isto chama-se praga – e como o casal Borralho não usa nem os poucos agroquímicos aceites pela agricultura biológica (como a cal, por exemplo), teve de tratar delas uma a uma, à mão.
A NaturHortas é, como se disse, mais do que biológica. Esta rede de hortas foi fundada por Rui e Marília Borralho quando e porque a pandemia da covid-19 lhes caiu em cima. Agora, trabalham com mais de 20 parceiros e têm centenas de hortas que querem fazer parte deste projeto que põe terrenos desativados a produzir de forma sustentável.
“O nosso objetivo é, a qualquer momento, poder pegar em qualquer coisa na horta e pô-la na boca”, afirma Rui Borralho para explicar a restrição ao uso de qualquer tipo de agroquímicos. Além disto, há que ter formação para aplicar qualquer agroquímico, e esta rede faz-se essencialmente de agricultores não profissionais, a dar os primeiros passos de galochas.
Era esta, aliás, a situação de Rui e Marília. Tinham acabado de fazer um grande investimento em alojamento local na zona de Sintra. “O ano de 2020 estava todo marcado e, de repente, começam a cancelar reservas”, conta Marília. O resto da história já sabemos. “Começámos a cultivar para pôr comida na mesa, até isso estava em risco”, avança Rui. O pátio é pequeno, com uma metade ocupada pelo galinheiro de raças portuguesas, a perdição de Rui. “E se pedíssemos o quintal ao vizinho?”, perguntou uma noite Marília. Foi uma daquelas frases que se dizem inconsequentes, mas que ficam a ressoar e acabam por ir ter a algum lado. Daí a pouco, surgiria uma ideia de negócio.
Depois de os primeiros vizinhos cederem os pequenos terrenos, vieram outros oferecer lugares maiores, antes inutilizados, e assim foi possível criar os NaturCabazes para vender no distrito de Lisboa. Rapidamente, o casal deixou de assumir a agricultura para passar a funções de gestão.
Os verdadeiros agricultores são os donos dos terrenos, que ficam com 30 por cento da produção para consumo próprio e vendem o restante à NaturHortas, ou quem não tem talhões próprios mas quer trabalhar a terra. Nesse caso, Rui e Marília fazem a ponte entre agricultor e proprietário. “Queremos ser o Airbnb das hortas”, resume Rui.
À chegada a cada terreno, levam a lista do que foi pedido pelos clientes – curgetes, couves e feijão-verde saem sempre, mas incentivam a que se cultivem raridades. “Andamos a pensar pôr quiabos”, diz-lhes Ricardo Ferreira, pouco depois de os receber na sua horta. É motorista de pesados e a mulher, Raquel Molarinho, é professora de artes visuais. Já só pensam na hora da reforma, para poderem dedicar-se totalmente ao campo.
As visitas servem para verificar que cada jardim comestível segue as regras de produção da NaturHortas e trocam-se mezinhas, como a pasta de cebola e alho para acabar com os pulgões ou os cravos plantados aqui e ali para afastar certas pragas. No final, falta colher, pesar e pagar a estes microagricultores – não têm sistemas de refrigeração, é tudo apanhado diretamente para as entregas. “Vendemos frescura”, atira Rui. Quando é para cortar, Raquel não dá hipótese a mais ninguém. Depois de tanto tempo a cuidar, era o que faltava pôr a tesoura em mãos alheias.
Re-coffee. Os novos pés de café
Rui Monteiro era estudante quando olhou para uma chávena e viu muito mais do que um bom café. Com a borra, descobriu como fazer calçado 100% sustentável e criou a Re-Coffee, um projeto de jovens empreendedores que acreditam na slow fashion e num amanhã mais verde.
A ideia surgiu enquanto estava a tomar café.” A frase, comum a tantos momentos criativos que mudam a história, tem especial graça quando essa ideia está diretamente relacionada com o que Rui Monteiro tinha à mesa. Na altura estudante de Engenharia de Materiais, na Universidade do Minho, resolveu perguntar ao dono do café da sua terra, em Famalicão, qual a quantidade de borra que ali sobrava por dia – seis a sete quilos. “Comecei a pensar: se eu recolher a borra de café de uma cidade inteira, será que posso transformá-la num produto de valor acrescentado?”
Três anos depois, sentamo-nos noutra mesa, agora em Braga, com Rui Monteiro e o valor acrescentado que saiu da sua cabeça: a Re-Coffee, uma startup que, em sociedade com Lídia Leal e Kátia Pereira, apresenta uma linha de calçado sustentável, com eco sola e coffee leather, um material feito de borras de café e borracha reciclada, a partir dos excedentes da própria indústria do calçado. Chamaram-lhe Kaffa, o nome da região berço do café, situada na Etiópia.
A linha tem atualmente sete cores, e a cada modelo atribuíram um nome ligado ao café – red velvet, pelo vermelho do fruto do cafeeiro, coffee, dark coffee, latte machiatto, latte pingatto, caramel, até ao matcha, a bebida verde que também contém cafeína. Os modelos são unissexo na aparência, mas disponibilizados para homem e mulher tendo em conta as diferentes necessidades ergonómicas do pé.
Chegar até aqui levou o seu tempo, com “muitos percalços pelo caminho”. Ainda sem adivinhar o que podia criar com este desperdício, Rui partiu para a recolha em cafés e restaurantes, e começou a investigação: limpar e retirar a humidade da borra em casa, misturá-la com outros materiais, equilibrar bem a borra do café arábica e do robusta, cujas cores diferem, e, por fim, testar a ideia numa empresa de componentes de calçado, a Bolflex, em Felgueiras, onde hoje se produzem os materiais que compõem a Kaffa. A palmilha e o forro de cada sapatilha contêm fibras naturais de coco e poliuretano reciclado, para maior conforto e amortecimento do pé. “Faço questão de só usar materiais não testados em animais”, completa Rui.
Cada par é feito com o excedente de cerca de 25 expressos, dependendo do tamanho da sapatilha. Para além de aproveitar a borra de café, e de recorrer a material reciclado para criar a linha de calçado, Rui Monteiro dá a volta completa ao ciclo, ao tornar as Kaffa recicláveis. “Convidamos os clientes a devolverem-nos as sapatilhas depois de usadas e nós damos desconto numa segunda compra. Conseguimos transformar estas sapatilhas em placas com aroma a café que podem ser aplicadas em decoração de interiores ou num parque infantil, por exemplo.”
Atualmente, as vendas decorrem no site da Re-Coffee. O objetivo passa por angariar parceiros onde vender a marca. Mais do que em sapatarias, Rui preferia ter as suas criações à venda em cafés icónicos do país –, mas também ter um espaço próprio que conjugue produção e venda direta ao público. Ao mesmo tempo, Rui, Lídia e Kátia estão a trabalhar na diversificação da coleção. No futuro, será possível vestir Re-Coffee da cabeça aos pés. “Queremos ter uma linha de calçado infantil, bolsas, mochilas, acessórios, até vestuário, sempre com o café associado”, adianta Lídia. “Mas fazemos sempre um apelo ao consumo consciente”, completa Kátia.
Mais do que vender um produto novo que nasceu do desperdício, a Re-Coffee apela a que os clientes façam uma escolha ponderada, seguindo o conceito de slow fashion: consumir moda duradoura, que respeite em todas as fases de produção o meio ambiente e as comunidades envolvidas, reduzindo a criação de lixo. Para além de clientes, Rui Monteiro quer também sensibilizar outros engenheiros de materiais como ele para que sigam os seus passos, com ou sem Kaffa nos pés. Quem sabe os desperdícios que ainda esperam por uma nova vida.