A ementa da noite de Consoada agradar a todos é meio caminho andado para que se atinja o nirvana natalício, a absoluta harmonia familiar. Mas nem sempre é fácil que tal aconteça.
Porque é tradição comer bacalhau cozido no Natal?
Esta refeição frugal em dia de festa deve a sua razão histórica ao jejum de carne exigido pela Igreja para esta época e ao facto de o bacalhau ter sido sempre um produto disponível e acessível à maioria das bolsas.
Deve comprar-se bacalhau da Islândia ou da Noruega?
Na verdade, é uma questão de gosto. O bacalhau da Noruega torna-se mais fino depois de demolhado e o da Islândia é maior, dá postas mais altas e brancas. Convém escutar a opinião de quem come.
E que tipo de bacalhau?
De preferência, o bacalhau deve ser comprado seco. O ultracongelado só deve ser opção quando não há tempo para demolhá-lo, já que o processo de ultracongelação retira algum sabor ao bacalhau. E o bacalhau seco cresce depois de demolhado, ou seja, tem mais rendimento por quilo.
É verdade que o bacalhau branco é de melhor qualidade?
Não. Um bacalhau seco deve ter uma cor amarelada – sem manchas ou marcas de sangue – e manter-se hirto quando agarrado pela cauda. A cura amarela, em que o bacalhau é primeiro hidratado e depois sujeito a uma secagem lenta, dá, regra geral, garantia de maior qualidade.
Como é que se demolha corretamente?
Antes da demolha, o bacalhau deve ser lavado debaixo de água fria corrente. Depois, convém colocá-lo num recipiente com água, dentro do frigorífico. Em média, o bacalhau deverá ser demolhado durante 48h, mudando-se a água três vezes nesse período. Bacalhaus maiores ou mais pequenos podem exigir períodos mais longos ou mais curtos.
Como é que se sabe que já está bom?
Durante a demolha devem retirar-se pedaços do meio do bacalhau para ir vendo como está de sal. Há quem aprecie o bacalhau mais salgado, há quem o prefira mais suave. Novamente, é uma questão de gosto.
Qual a melhor forma de cozinhar o bacalhau?
A tradição manda que se sirva o bacalhau cozido. Tecnicamente, porém, o bacalhau jamais deve cozer, antes escalfar. A água deve ferver com um dente de alho e uma folha de louro. Ao levantar fervura, coloca-se o bacalhau; assim que estiver a borbulhar novamente, desliga-se e espera-se 15 minutos. As batatas, couve e restantes elementos devem ser cozidos à parte, já que têm tempos de cocção distintos.
E se na família não apreciarem bacalhau cozido?
Cozinhe-o de outra forma. Na brasa, por exemplo, deixando-o assar com a pele virada para baixo ou no forno, regado com azeite, neste caso com a pele virada para cima. É Natal, ninguém leva a mal.
O bacalhau é mesmo a única opção não carnívora de Consoada?
Não. No norte do país, sobretudo no Minho e Trás-os-Montes, também há quem coma polvo na ceia natalícia, uma tradição copiada da vizinha Galiza. E em certas ilhas dos Açores também, tanto assado como guisado. Pode ser uma boa alternativa para quem quer desenjoar do bacalhau, sem recorrer aos pratos de carne.
Como é que se pode evitar que o polvo fique borrachudo?
Hoje em dia é muito fácil, basta congelá-lo ou comprá-lo congelado, já que esse processo faz quebrar as fibras que lhe dão a chamada textura borrachosa. Antigamente era mais complicado, era necessário bater repetidamente no polvo, de forma a obter o mesmo resultado.
E a cozedura?
O polvo deve ser previamente descongelado e depois mergulhado três vezes em água a ferver para ajudar a amaciá-lo ainda mais. De seguida, deve ser cozido com uma cebola inteira descascada, em panela de pressão (cerca de 15 minutos) ou normal (cerca de 45 minutos).
Como é que se deve servi-lo?
No Norte, depois de cozido o polvo, é colocado dentro de uma assadeira de barro, com cebola previamente refogada em azeite, e vai ao forno. Depois, é servido com batata e couve cozida. Já nos Açores, a tradição manda guisá-lo em vinho tinto, calda de tomate e massa de malagueta, reservando também um pouco da água da sua cozedura.
E não se pode mesmo comer carne na Consoada?
Então não pode? Na Madeira comem-se as célebres espetadas. Nalgumas ilhas dos Açores, no Algarve e em algumas regiões do Alentejo, há quem não dispense a galinha ou o famoso galo-capão assado no forno. Nestas regiões praticava-se o jejum até depois da Missa do Galo, comendo-se depois uma refeição mais substancial, que já podia incluir carne.
Galo-capão? É por isso que se chama Missa do Galo?
Não. O nome Missa do Galo tem várias explicações possíveis. Algumas delas têm origem em lendas, como por exemplo aquela que reza que o nascimento de Jesus Cristo teria sido anunciado por um galo, à meia-noite. Outra que diz que o papa Sisto III terá instituído esta missa para celebrar o nascimento de Cristo ad galli cantus, ou seja ‘à hora que o galo canta’. E também há quem defenda que era tradição matar um galo à meia-noite de 25 de dezembro e que seria essa a razão do nome da missa.
Porquê escolher o galo-capão?
Porque são galos especiais, que como o nome indica, são castrados antes de atingirem a maturidade sexual. Isto faz com que se tornem mais gordos e menos musculados, e a carne seja mais macia. Podem não ser fáceis de arranjar: convém pedir com antecedência. São típicos de certas zonas do Norte, especialmente Freamunde, onde têm o estatuto IGP (Indicação Geográfica Protegida). Apesar da carne mais tenra, convém, ainda assim, cozinhá-los durante algumas horas.
O peru não entra nestas contas?
O peru geralmente estava reservado para o dia de Natal, 25 de dezembro. Mas hoje em dia também é permitido à mesa na noite de Consoada.
Como é que se deve escolher um peru?
Por exemplo, pelo sexo. Uma perua será ideal para famílias menos numerosas, já que são mais pequenas, mais fáceis de cozinhar e a sua carne é mais macia. Para um peru macho, que pode atingir perto de 10 quilos, será preciso um forno maior – ou a lenha, ou quase industrial.
Basta comprar e cozinhar?
Não. A marinada prévia é fundamental. O bicho deve repousar no mínimo 24h, mergulhado em água, sal, laranjas e limões cortados em pedaços, um pouco do seu sumo, vinho, alho, louro, pimenta, especiarias e outras ervas a gosto. De preferência, isto deve acontecer no frigorífico. Se não for possível, que aconteça numa zona fria da casa, mantendo gelo na água.
E o recheio?
No recheio, como na guerra, vale tudo. Mas o mais comum é usarem-se os miúdos do animal, cogumelos, sultanas e castanhas, ligados entre si com pão ralado.
Por quanto tempo deve o peru assar?
Depende do tamanho. Mas o ideal será um tempo de forno de 4 a 6 horas, a uma temperatura não muito elevada: 140 ºC. É importantíssimo, ao longo deste período, ir regando o animal com água colocada no fundo do tabuleiro, a que se vão juntando os sucos libertados pelo calor.
Quando é que o peru está pronto?
Sabe-se executando um truque básico: pressiona-se a zona da perna, que é a que demora mais a assar. Se o líquido que dela sair for mais branco do que rosado, o peru está pronto.
Passando para os doces: o bolo-rei não é consensual…
Pois não, mas não se encontra bolo mais tradicional – pensa-se que uma versão semelhante já seria servida na Saturnália, festa em honra de Saturno, deus do Sol, que no tempo dos Romanos durava vários dias e marcava o solstício de inverno.
Ainda assim, existem alternativas?
Claro. Para começar é possível fazer o bolo-rei em casa e, assim, evitar os ingredientes que menos se apreciem, ou o próprio vinho do Porto que dá um sabor característico à massa. Outras hipóteses serão o bolo-rainha, em que a fruta cristalizada é substituída por frutos secos, ou até a típica galette des rois francesa, que apesar de estar na origem do tradicional bolo-rei, pouco tem a ver com este, já que se trata de uma tarte de massa folhada e amêndoa.
Quanto aos restantes doces: como evitar frituras?
É uma boa pergunta: de facto, boa parte da doçaria natalícia portuguesa envolve fritura. A única maneira de evitar os fritos será evitar comer sonhos, azevias, filhoses ou rabanadas e optar por alternativas igualmente tradicionais, como o pão de ló, o bolo de mel (típico do Algarve e da Madeira), as broas castelares ou a aletria. Não se ficará mal servido.
A aletria deve ser mais consistente ou mais cremosa?
As receitas variam conforme as regiões e os gostos. No Minho costuma ser mais cremosa, nas Beiras, por exemplo, é mais comum fazerem-na de cortar à fatia. A diferença está no rácio entre a quantidade de aletria (massa) usada e as gemas de ovo.
E todas estas calorias, quem é que as conta?
Ninguém. Essa preocupação não é nada natalícia.