Rita Nabeiro convidou Dino d’Santiago para uma conversa sobre música e ação social, sobre as suas raízes humildes e os seus sonhos para o futuro. A entrevista, que teve lugar no Centro Cultural de Cabo Verde, durou cerca de uma hora, que se revelou curta para tudo o que havia para dizer.
Usas a tua voz para falar de temas importantes. É um dever ou é um propósito maior?
Acredito mais no propósito, alinhado com o que me faz vibrar. Se eu adormecer e no dia seguinte despertar com aquela mensagem ainda a incomodar-me, sinto que tenho de agir. Mas não me sinto um ativista, sinto-me um cidadão a exercer o seu direito, e sinto a responsabilidade de não me silenciar perante injustiças e coisas que me fazem escrever e ser impulsivo. Quando partilhei com o meu pai que ia tocar na Festa do Avante, no início do conflito entre a Ucrânia e a Rússia, quando não havia uma posição muito clara sobre o conflito do partido que organiza a festa e muita confusão na internet, ele temeu pela minha vida. Disse-lhe, antes de sair de casa: “Se for para morrer por isto, pela liberdade de fazer o que eu sinto que está certo…”
Aproveitaste para passar a tua mensagem?
Sim, senti que era aqui que tinha de estar. Porque foram pessoas que lutaram pelo meu direito à liberdade. Não é algo que estou a fazer de forma partidária, é algo que estou a fazer para celebrar as nossas culturas e este encontro. Mas havia muito medo e muitas notícias, e o meu pai temia. Eu entendo, porque o meu pai é uma pessoa que chega a Portugal em 1972 e, uma semana depois de cá estar, o tio que o traz é alvejado pela polícia. Ele estava a tentar separar uma luta, vem a intervenção policial, disparam e ele, infelizmente, morre. E o meu pai fica meio órfão, porque não tinha mais ninguém cá.
Dino D’Santiago e Rita Nabeiro no Centro Cultural de Cabo Verde.
Quando o teu pai veio para Portugal, vivia onde?
Veio primeiro para Sines. Felizmente, um padre – o padre César, que hoje é padrinho do meu filho – abrigava-o na igreja a partir das cinco da tarde, porque havia muita violência, muita gente revoltada com o facto de perderem pessoas na guerra, e aquela cor era sinónimo de revolta. Então, ele tinha os seus motivos para dizer: “Nunca fales de política, nunca isto, nunca aquilo.” Mas eu senti que já nasci num mundo mais livre, graças a ele também, e disse-lhe mesmo: “Se o pai está preocupado com a minha vida, então que seja esta ação a levar-me, e não o medo.”
Tiveste uma infância dura, mas nunca faltou amor. Imaginaste que poderias chegar aonde estás hoje, a viajar o mundo e a espalhar a tua mensagem e a tua música?
Sonhar, sonhei. Mas quando olho para trás e penso naquele puto, não acredito que ele chegou aqui. E muitas vezes, nos impulsos e nos receios, ainda sinto aquele Dino do Bairro dos Pescadores [em Quarteira].
Quem era esse Dino?
Não era tão feliz como eu achava. Vivia muito condicionado, principalmente por não ter os pais em casa, como alguns amigos. Lembro-me de um que tinha sempre a mãe em casa, e eu invejava um bocado aquela doçura. Os meus pais quase não puderam passar tempo connosco. Ao crescer, apercebi-me de que fiquei com tantas feridas dessa ausência de afeto – a minha carência ser um sinónimo de fraqueza, chorar muito e de repente ter de engolir o choro porque senão és uma criança feia… Enfim.
Nasces e cresces num contexto difícil, numa pobreza que não era espiritual, mas que era pobreza.
Adorei essa forma como trouxeste… Pobreza, não espiritual, mas pobreza. Essa é a grande verdade, foi a espiritualidade que salvou a minha família, sem margem de dúvidas.
E a fé também?
A fé dos meus pais e, posteriormente, a minha espiritualidade. Porque com base nas crenças deles durante algum tempo senti-me aprisionado, sentia que era mais ambicioso do que o lugar onde estava. Sentia que sonhava com coisas, estando naquele Bairro dos Pescadores, com água a entrar por dentro de casa, com aqueles ratos a comerem a roupa, com aquele cenário dantesco, o cheiro da vala aberta… Mas ao mesmo tempo, olho para trás e penso: todas as crianças que conseguiram sobreviver àqueles passeios com o chão inundado de seringas dos toxicodependentes…
“As coisas que me impediam de ser mais livre, eu associava sempre à pobreza, não associava à cor. A questão do racismo para mim não era tão direta, não era tão clara, até eu crescer e realmente me aperceber.”
Com essa tua vivência, podias ter caído para o outro lado. Pensas que podias ter-te tornado uma pessoa diferente, mais revoltada e amargurada, mas que usaste a tua revolta num sentido positivo, para melhorar as coisas à tua volta?
Foi aí que a fé dos meus pais nos salvou. A questão da catequese, dos domingos garantidos de missa – por mais que não me apetecesse fazê-lo, eu temia mesmo a ida para o inferno. Toda aquela imagem, toda aquela construção do temor a Deus – eu tinha pesadelos, não podia ver O Exorcista! Se não fosse isso, eu garantidamente não estaria aqui. Estaria com as pessoas com quem agora trabalho no Estabelecimento Prisional do Linhó, que quando começam a revelar a sua infância e o contexto, eu olho para mim e penso: “Pronto, eu seria uma destas pessoas.” Mas felizmente tinha medo de ir para o inferno, medo de pecar, medo desses lugares que me protegeram e me trouxeram até aqui. Por motivos que não considero certos, porque acho que devemos amar Deus, ou seja, os nossos movimentos nunca devem ser por medo, não é a energia certa para nenhuma boa decisão. Mas foi esse medo que fez com que, quando saltávamos para uma vivenda só para tomar um banho de piscina, havia uns que queriam entrar dentro da casa, e eu nunca tive essa coragem, só tomava o meu banhinho e ia embora… É precisamente por isso.
Há uma música tua que podias cantar e era mais simpático do que eu estar a ler, mas…
Qual é o tema?
Badia.
[Cantado] Eu choro quando vejo a dimensão do teu sacrifício / Este ofício de ser perfeita que não passa de um suplício / Se não fosses tão forte, estarias acamada num hospício / Oxi N kre sabe kuzé ki é ser mudjer.
Uma salva de palmas! Esta música é muito bonita porque quase consegues pôr-te no lugar e reconhecer a dureza do que é ser mulher, mãe, todas essas figuras numa só. Isso é constante na tua música e nas entrevistas. O que te leva a dar voz à figura feminina?
Lá está: sempre a fé e a religião. Foi uma confissão, pedido de desculpa de quem está como observador sabendo que está do lado do privilégio de [ser] homem. Muitas vezes essa pessoa que, fruto deste patriarcado, exerceu o seu poder e tomou decisões que penalizaram mulheres. É o meu exercício de perdão e é uma canção para a minha mãe, porque é a pessoa que eu mais admiro, que mais me desafiou a ser o mais íntegro possível, mesmo que sinta muitas vezes que falhei. E vou-me redimindo, porque é uma construção. A minha mãe sempre foi esse colo de não-julgamento.
De que forma?
A minha mãe é uma criança que foi entregue pela sua mãe, que estava no leito da morte, à minha avó Teresa, que cuidou dela e a mimou até aos seus 18 anos, até o meu pai a trazer para Portugal. Nessa mulher mimada, eu vi uma mulher de muita força. Ela nunca deixou que a maltratassem. Teve um patrão que ultrapassou os limites ao dizer: “Vocês em África fazem muito mais do que isto”, para insinuar que a minha mãe deveria ter um ato sexual com ele, enfim, coisas que me foi contando só em adulto, que eu não compreendia o porquê de ela às vezes ser tão dura e tão direta. Eu via aquela mulher a ir lavar roupa aos tanques no centro de Quarteira, depois ir trabalhar na copa em Vilamoura, depois fazer o seu curso de cozinha para subir de estatuto e passar a cozinheira… Nós quase não víamos a minha mãe e, quando víamos, aquilo mexia comigo. A minha mãe adormecia com as mãos em cima da mesa a latejarem e os tornozelos inchados, e chorava… Fazia-me confusão, mas nós não podíamos fazer nada.
Só mais tarde é que percebes que aquilo também era amor.
Já pedi várias vezes perdão porque sinto que fui injusto por não perceber, era uma criança. Eu fui para a escola sozinho. A minha mãe mostrou-me o caminho, mas depois, com cinco anos, tive de ir sozinho. Nunca mais me esqueço, parece que fiquei traumatizado, com a minha mochilinha amarela a chegar ali e a ver todos os outros alunos a chegarem com os pais, e eu estava sozinho. Houve momentos em que julguei a minha mãe por isso. Hoje reconheço que, realmente, ela fez de tudo. Até o ficarmos trancados em casa – era isso ou a rua.
Lembro-me de outro episódio em que referes a tua mãe, mas que se calhar é o teu primeiro contacto com o racismo, quando estavas na escola… Tinhas que idade?
Foi no terceiro ano. Eu era muito falador, estava sempre distraído, e essa professora gritou: “Cala-te, preto!” Como éramos ainda alguns afrodescendentes, comecei a ver para qual de nós era e vi que o olhar era direcionado para mim. Não disse nada, mas depois fui para casa e contei à minha mãe. Na manhã seguinte, ela foi à escola, fez queixa e a professora foi mesmo despedida.
Isso mostra que era uma mulher de garra.
Sim, e que na minha escola também havia mulheres. A diretora também tinha coragem.
Na altura, não tinhas a sensação de que esse comentário fosse racista?
Nada. Nem sequer conhecia o termo racismo. Mas aquela expressão, “preto”, soou-me agressiva, rude.
Fizeste até uma t-shirt recentemente que diz “preto, estás na tua terra”.
Sim, já foi uma mensagem para o meu filho. Sabendo que infelizmente esse comentário ainda vai perdurar – tanto que, nesse ano, tinham tirado a vida ao Bruno Candé com essa expressão. Fi-lo no sentido de propriedade, ou seja, “estás” mesmo na tua terra, é uma afirmação. Assume-te com a tua etnia até que possas só ser, e aí o prefixo “preto” já pode ir embora. Este é agora o meu grande sonho: ser só o Dino, não o afrodescendente, não o luso-cabo-verdiano, etc.
Já és. Mas percebo que, de alguma maneira, representes um grupo de pessoas. Acho que precisamos de falar sobre este tema, que continua a ser um pouco tabu. Ainda há muito racismo em Portugal?
E que muitas vezes não dá para explicar. São microagressões que vão acontecendo. Sempre disse que não acreditava que Portugal era racista porque cresci num ambiente em que ali, no sul de Portugal, as imagens não eram nada distantes das que víamos no início dos anos 90 da UNICEF a fazer aquelas campanhas em África. Era a mesma realidade, só que num país europeu. Eu via pessoas brancas nas mesmas condições. Por isso é que disse: “Não é racismo, é pobreza. O que eu vejo em Portugal é um flagelo que se chama pobreza. Grande parte da população é pobre.” As coisas que me impediam de ser mais livre, eu associava sempre à pobreza, não à cor.
A perceção do racismo surge mais tarde?
A questão do racismo para mim não era tão direta nem clara até crescer e me aperceber de que estas pessoas, mesmo sendo pobres e estando na miséria, se for para passar à frente da fila, vai haver uma empatia natural da cor que os vai meter umas escadas acima de mim. Foi aí que o romantismo começou a dissipar-se e comecei a ficar mais melancólico, porque comecei a ser vítima desse lugar. Hoje em dia, continuo a não ver a realidade por preferência: para sofrer menos, procuro focar-me e investir a minha energia no mundo que eu quero que exista, mais do que na constatação daquele mundo que ainda existe. Acordo todos os dias em busca do “mundo nôbu”, sempre.
“Procuro focar-me e investir a minha energia no mundo que eu quero que exista, mais do que na constatação daquele mundo que ainda existe. Acordo todos os dias em busca do ‘mundo nôbu’.”
Hoje estás num lugar de privilégio. Como é que o aproveitas para colocar na ordem do dia temas fraturantes da sociedade, que está cada vez mais xenófoba e intolerante? Tu não és só de cantar nem de falar, és de fazer.
A tua última palavra foi o que me salvou de me tornar uma pessoa revoltada. O melhor que posso fazer é fazer. Fui construindo os meus pilares com base nas minhas crenças. Acredito num “mundo nôbu”. Tive vários amigos presos, que várias vezes quis visitar e nunca visitei. Agora o meu primo suicidou-se dentro da prisão. O que é que eu posso fazer com as pessoas que lá estão e que me representam também? No [Estabelecimento Prisional do] Linhó, mais de 80% são afrodescendentes.
Estavas a dizer-me que vais ao Linhó hoje…
Descobri a minha missão. Não é numa paróquia, é num estabelecimento prisional. São pessoas que eu entendo, tenho empatia com o contexto de onde saíram.
Queres falar sobre esse projeto?
Montei um estúdio, porque a música ajuda a libertar. Eles tinham sessões de terapia e não revelavam grande parte do que os amargurava. Até para termos terapia precisamos de um pouco de literacia, de orientação. Eu desafiei-os a escreverem coisas que queriam dizer aos pais, ao sistema, a traduzir tudo isso em canções. Ouvi e li coisas… Consegui finalmente juntar em estúdio pessoas de etnia cigana com pessoas de etnia africana e foi o primeiro encontro em estabelecimentos prisionais dessas duas etnias tão discriminadas e que têm muitas rivalidades, mas que ali tinham em comum a mesma história.
A música une?
Sem margem de dúvidas. É muito mais valioso para mim este projeto e este disco, que finalmente está feito. Juntei-me com eles todas as quartas-feiras e construímos aquele álbum.
Está para quando?
Março. Consegui uma parceria com um estabelecimento prisional em Boston [EUA] e outro em Cabo Verde. Agora o meu objetivo é haver esse intercâmbio, mesmo que só digital, para que eles possam ter mundo.
Estás a abrir-lhes um mundo dentro de grades.
E eles devolvem-me isso, sentem-se representados sempre que eu ganho alguma coisa. Estão sempre a rezar por mim. Quando recebi a Medalha de Mérito [Cultural] no Estabelecimento Prisional do Linhó, quase todos choraram e agradeceram, sentem que é deles também. É um público – que eles também o são, a gente às vezes esquece-se disso – que está ali condicionado, mas que continua a ter muitos sonhos, continua a querer ser melhor.
Muitas vezes é fruto de contexto.
Claramente. Por isso é que tenho muita empatia.
Tens muito esse sentimento de justiça, ou de injustiça, e és um homem de causas. Tens agora a Associação Mundo Nôbu.
Fomos aos Estados Unidos ver um modelo de projeto que trabalhasse com jovens e adolescentes, que se enquadrasse com o contexto afrodescendente da Grande Lisboa, e felizmente encontrámos o The Brotherhood Sister Soul, no Harlem [Nova Iorque], que tem feito um trabalho inacreditável nos últimos 30 anos, muito premiado e com uma taxa de sucesso para lá de 90%.
O que é que eles fazem?
Veem jovens que têm potencial em desporto, artes, economia, o que seja. Procuram entender o potencial daquela criança e dar-lhe ferramentas, com uma rede que está disponível 24 horas por dia. Nós vamos iniciar um projeto de três a seis anos, dependendo da idade, com 160 crianças.
E como foi conhecer a Madonna e mostrar-lhe essa nova Lisboa? Ou como é que está a ser, porque vocês ainda mantêm alguma ligação.
Quando comecei a conviver mais com ela, decidi não ver nada sobre a sua vida. Fui descobrindo tudo através das suas equipas – os músicos, os técnicos, ela sabia o nome de toda a gente. Havia homossexuais, brancos, negros, indígenas, a diversidade que havia naquela equipa de mais de 200 pessoas para fazer os concertos mostrou-me quem ela era. Foi aí que percebi: “Ok, esta mulher não foi um produto.”
Achas que ela passa uma imagem diferente para fora?
Completamente. Acho que ela tem de passar aquela imagem dura. Depois de falar com ela, percebi tudo. Não saía do estúdio enquanto a música não estivesse feita – e muitas vezes saíamos às duas, três da manhã, em Londres. Ela é que decide tudo. No frio de inverno, em janeiro, pediu para aquecer o Coliseu todo onde estivessem equipas a trabalhar, até ao último andar. E foi certificar-se – de bengala, porque estava mal da coxa – deque os andares estavam realmente aquecidos. Foi uma lição de humildade para mim.
Também tiveste humildade, porque podia ter-te subido um pouco à cabeça… “Agora conheço a Madonna, ela escolheu-me.” Mas não: foste mostrar-lhe a “nova Lisboa” e ela mostrou-te o tal mundo novo.
Foi uma troca muito bonita. A diferença é que não foi para mim. Só lhe mostravam fado, fado, fado, e era sempre um grupo muito elitista. O que fiz durante um ano e meio foi mostrar-lhe tudo de Moçambique, Cabo Verde, Angola, São Tomé, Brasil. Desde o mais eletrónico (de um Branko ou uma Blaya) às batucadeiras. Foi o clique para ela gravar um disco.
E acabou por convidar as batucadeiras…
Mais do que convidar! Elas foram nove meses [em digressão]. Eram o momento alto do concerto, chegavam pelo corredor, atravessavam o público e a Madonna recebia-as de joelhos. Um momento sublime. E eram as únicas pessoas que ficavam no mesmo hotel que a Madonna. Ela fazia questão.
Qual o encanto das batucadeiras?
A Madonna ficou admirada de como aquelas mulheres nunca recebiam quando exerciam aquela arte. Não acreditava que aquelas mulheres acabavam a performance e a seguir apanhavam o barco para o outro lado do rio [Tejo], outras iam para Sintra ou Alverca, porque tinham de se levantar às quatro da manhã para trabalhar e ir limpar a casa de alguém – e essa era a vida dessas pessoas, que só faziam aquilo pelo amor à sua cultura e às suas raízes. Para mim, a mulher batucadeira representa mesmo Cabo Verde. São as mães, pais, avôs, avós concentrados numa só pessoa. Há muito abandono dos pais nessas famílias, e essas mulheres conseguem edificar nações.
É algo ainda transversal na cultura africana. As mulheres ainda são as matriarcas na família?
São e não é por quererem, é porque são obrigadas. O patriarcado é um exercício de privilégio, o matriarcado não – é uma imposição da circunstância. Valorizo muito essas mulheres por isso. Acho inacreditável como é que alguém sofre tanto e depois consegue, mesmo no meio daquela dor toda, passar valores e princípios que fazem com que os filhos cresçam e sintam orgulho nessas mesmas mães, que são invisíveis para a maior parte das pessoas. Criam os filhos dos patrões, não criam os próprios filhos porque não têm tempo. Mas os filhos conseguem entender, de alguma forma, que estas mulheres são tudo.
Parece que te estou a ouvir falar sobre a tua própria mãe.
Sim, ela embalou-me assim, ao ritmo do batuque. É a minha homenagem, para ela e para a minha avó Teresa.
Quem é que te inspira, na música e na vida?
A minha mãe, sem dúvida. Mas o meu pai é um exemplo do que quero ser enquanto homem. Naquelas guerras de irmãos, o meu pai, que sabia que a minha mãe ia odiar ver–nos a lutar, disse-nos uma vez – nunca mais me esqueço: “Vocês não matam a minha mulher.” Ou seja: “Eu amo-vos muito, mas vocês não são prioridade em relação à vossa mãe. Porque um dia vocês formam as vossas famílias, vão-se embora, e quem vai ficar somos nós os dois, por isso a vossa mãe é que é a minha prioridade. Sabendo que isto é uma coisa que ela nunca toleraria, se voltar a acontecer, podem considerar-se órfãos de pai.” Foi uma coisa dura que ele disse, mas nunca mais lutámos. Sempre ouvi que os filhos são prioridade, mas realmente os filhos foram feitos por duas pessoas que se amam. O meu pai é uma pessoa assertiva, com os seus princípios, com as suas teimosias, mas, no que diz respeito a dar palco à minha mãe – que merece –, o meu pai nunca fica com os louros. Ele olha para mim e diz: “Tu és mesmo a tua mãe. Só que ela não teve a possibilidade, mas és.”
Eles sempre te apoiaram para seguires o que quisesses.
Muito. É aquela coisa: havia pobreza, mas a riqueza espiritual fez com que nunca me dissessem: “Não faças, não sigas, não acredites”. Isso foi a maior herança.
Que sonhos tens hoje?
Ainda tenho alguns, mas já são menos. Quero muito ter a minha fundação em Cabo Verde para poder ajudar principalmente os artistas idosos e as mães que vivem no interior, porque sempre que ajudas uma mãe é garantido que o filho não sai da escola, enquanto connosco, homens, isso não é garantido. Em Cabo Verde sinto que há tanto jovem e tanto sonho por edificar, que acho que posso ser uma mais-valia. E sei que isso vai alimentar-me a alma e rejuvenescer-me.