A relação da Delta Cafés com a cerâmica é longa e recheada. No imaginário ainda está bem presente a chávena lançada na década de 1970, em faiança, com um design que se tornou imagem de marca em cafés, restaurantes e hotéis um pouco por todo o país, e que foi evoluindo ao longo dos anos. Neste capítulo, uma das chávenas de design foi a que Álvaro Siza Vieira criou para a Delta, minimalista e funcional, em 2012. Mas tal como as chávenas da Delta tiveram diferentes versões, designs, formatos e tamanhos, também a cerâmica portuguesa se foi metamorfoseando, conheceu períodos de crise e outros de grande fulgor criativo, como este em que nos encontramos. 

Nunca como agora houve tantos workshops e aulas com ceramistas, gente criativa a pôr as mãos na massa, objetos que têm tanto de utilitário como de belo. Neste artigo apresentamos quatro ceramistas da nova vaga e as suas chávenas de café que tanto nos inspiram.

 

Raquel Terena – A Goiva

Raquel Terenas abre o portão do seu ateliê, no bairro dos Anjos, com o avental que usa para criar as suas peças, convidando a entrar. Estava a meio de uma peça. No Cassiano Atelier há vários artistas em residência e em exposição, mas é ela a proprietária do espaço e mentora das cerâmicas utilitárias A Goiva, marca que fundou em 2019, depois de anos a trabalhar em escultura e de estar fascinada por gravura e pintura. 

“Estudei nas Caldas [da Rainha], cidade da cerâmica, mas eu queria era pintar em grandes dimensões, era super bruta”, conta, com graça. A certa altura, começou a usar moldes em barro para os seus projetos: foi então que se deu a viragem para a cerâmica. Não foi um amor à primeira vista para a, hoje, ceramista de 34 anos. As suas peças incorporam todas estas influências herdadas de um percurso eclético, e as técnicas que usa com mais frequência são a da bola e a da lastra – nenhuma peça é igual a outra. A sua assinatura é visível nas canecas orelhudas, que Raquel Terenas exibe com orgulho. “Neste caso são orelhas, mas podem ser dedos, podem ser narizes… comecei a inserir a escultura na cerâmica utilitária e foi assim que aquela caneca nasceu. Parece que estamos a tocar noutra pessoa para comer ou para beber, ou seja, há um sentido de toque, há uma estranheza”, explica, sobre a influência das várias artes que domina. 

“Se eu estiver exausta mentalmente, não sou capaz de fazer escultura. Mas fazer cerâmica, por exemplo, a parte mais técnica, da bola – de começar a fazer as canecas –, é uma coisa que me recarrega.” Chamou à marca A Goiva por ser o nome da ferramenta que usa para escavar em gravura. “Foi aí que comecei. As minhas gravuras que morriam em gavetas não viam a luz do dia, até que decidi fazer t-shirts e, mais tarde, cerâmica.” Podemos encontrar as suas criações à venda nas lojas Kintu Estúdio, Pink Dolphin e Nova Banca Galeria. A sua relação com o café? “Sem açúcar! Todos os dias.”

Sofia Magalhães – Atelier das Madres

Chama templo à sua oficina, no número 94 da rua que lhe dá o nome. A entrada, repleta de plantas, convida à descoberta de um recanto que se nota, desde logo, muito pessoal. Sofia Magalhães tem uma secretária onde repousam todo o tipo de utensílios, cadernos, peças – e prateleiras cheias de cor e criatividade. É neste pequeno mas carismático ateliê, para onde se mudou antes da pandemia, que cria cada peça, como as chávenas de café, com recurso à técnica de enchimento de molde, a da lastra.

Trabalha com faiança, engobe e vidrado, além de recorrer ao decalque cerâmico, “que surgiu pela inspiração em chávenas de café de antigos estabelecimentos lisboetas”. Fez recentemente o novo serviço de chávenas de café do restaurante Casanostra, e também já criou peças de encomenda para o In Bocca Al Lupo e para o Marquise, em Lisboa. “Adoro café e adoro fazer chávenas: tenho muitas que vou fazendo à medida do meu gosto. Ou as vendo na loja Ícone, no Chiado, ou as pessoas vêm aqui. Tenho das chávenas mais clássicas às mais recentes, sem pires.” 

Hoje com 43 anos, foi há 18 que Sofia se iniciou na cerâmica. Depois de estudar no Curso de Cerâmica no Ar.Co, foi viver para Itália, fez workshops e conheceu outras formas de trabalhar. Em 2006, de regresso ao País, fundou o ateliê Caulino, que já não está nas suas mãos, mas onde permaneceu oito anos, tendo ainda passado por um ateliê na Mouraria. Nascida em Borbela, em Trás-os-Montes, admite que o seu coração é lisboeta. “Gosto muito da história da Madragoa e das madres de Goa: achei engraçado, porque o fazer da cerâmica tem muito a ver com a própria madre”, diz. Atualmente dá formação na sua oficina, seja em forma de aulas ou workshops de três a quatro sessões.

Mariana Espadaneira

Tímida mas assertiva, Mariana Espadaneira denuncia, com o seu doce sotaque, as raízes alentejanas. Nascida em Mora, e desde sempre incentivada pela mãe a criar peças com as próprias mãos, estudou Pintura na Faculdade de Belas-Artes, em Lisboa, e passou por vários ateliês até chegar à oficina Tijolo, aberta há dois anos pela arquiteta e ceramista Ana Maria Lopes. Aos 24 anos, Mariana Espadaneira domina a técnica da bola e parece estar como um peixe na água com a cerâmica utilitária. “É como se tivéssemos de a beliscar: é das técnicas mais antigas, mais ancestrais. Às vezes há outras formas mais rápidas, mas dá-me prazer esse desafio.” Para terminar algumas peças recorre ao engobe cerâmico. “É um termo mais técnico, uma pintura aplicada sobre o barro. Muitas vezes acontece primeiro o desenho, que está sempre no meu processo criativo, e só depois vem a peça”, explica. 

A artista inspira-se no Alentejo, “na Natureza, nas flores, nas sementes, nos pequenos seres por todo o lado, e às vezes também surgem inspirações de forma mais intuitiva, a partir de um livro ou de uma conversa.” Um dos elementos centrais do seu trabalho são as chávenas de café, “que voam logo”, e que têm “de ter o cunho artístico, mas também têm de servir a pessoa”. As formas são quase sempre irregulares e únicas, marcadas pelos tons terra, com desenhos inesperados que parecem quase rasgos de criatividade e impulsividade nas peças. 

Um dia no ateliê é sempre diferente para Mariana Espadaneira. “É sempre valioso não trabalhar sozinha, partilhar o trabalho é relevante. A cerâmica tem muito isso da empatia: o ajudar a despejar um molde, tratá-lo, dar opinião. Tem essa parte comunitária.” As suas peças estão à venda online e no Tijolo.

Haley Bernier – Heir Ceramics

Vai de bicicleta para a oficina e a primeira coisa que faz ao chegar é calçar as botas de trabalho. Haley Bernier cresceu no estado do Vermont, nos Estados Unidos, mas foi em Marvila, mais precisamente na Fábrica Moderna, que encontrou o seu cantinho no mundo para trabalhar como ceramista. “Tenho uma licenciatura em Belas-Artes e História da Arte na Universidade de Vermont, e passei um semestre no Goldsmiths College, em Londres”, recorda a ceramista de 37 anos. “Nessa altura, concentrava-me no desenho e na escultura, e só estudei um semestre de cerâmica”, acrescenta. 

Aterrou em Portugal em 2016 com o namorado, que já vinha com propósitos laborais. “Fiz um mestrado em Design de Produto, no iade. Aprendi a fazer slip casting [uma técnica de produção com moldes] e apaixonei-me pelo processo.” Muitas das suas peças parecem ter um formato amarrotado. “Quando se aprende a fazer slip casting, começa–se a pensar em todas as coisas de que se pode fazer moldes. Tinha muita curiosidade em saber como seriam os plásticos das embalagens de alimentos em cerâmica”, desvenda. Esta ideia veio da sua tese de mestrado sobre as disparidades entre o design industrial e o artesanal. “Perguntava-me coisas como: o que faz de um objeto bonito valioso? O que esperam as pessoas de um produto?”

As suas criações são quase todas em tons claros, como uma espécie de manifesto. “Prefiro que as peças finais de cerâmica permaneçam numa cor neutra, para contrastar com a ocupação dos rótulos dos produtos e os plásticos de cores vivas que já todos vemos.” Através da sua arte, pretende “criar objetos utilitários para as pessoas usarem no dia a dia. As peças destinam-se a ser objeto de interação e a ganhar valor através da rotina”, reforça. Quanto à sua relação com o café, diz que adora. “Sendo americana e vivendo cá, compreendo bem as diferenças geográficas, a força e qualidade do café e de como é servido aqui”, afirma. “Faço chávenas de cerâmica em três tamanhos diferentes, para garantir que ninguém fica de fora”, referindo-se aos gostos dos seus clientes, dos adeptos de expressos aos de café com leite.