Então e os patos? Paula Corte-Real ri-se. Toda a gente lhe pergunta pelos patos. “Os patos hão de vir, quando lhes apetecer.” Assim como vieram os passarinhos, os insetos e todos os outros pequenos animais que já povoam o recém-inaugurado jardim do Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. “Nós não trouxemos nenhum animal, mas os animais aparecem, naturalmente”, diz a arquiteta paisagista que é a responsável pela manutenção do Jardim Gulbenkian e pelo seu programa educativo. Paula Corte-Real acompanhou todo o projeto de implementação da nova área, inaugurada no final de setembro, e acredita que os patos, que habitam o lago junto ao Museu Gulbenkian e que fazem as delícias das crianças (e das já não tão crianças) que por ali passeiam, hão de encontrar o seu caminho até ao novo lago. O jardim é um organismo vivo, explica. Há que plantar e cuidar, mas é preciso deixar que a natureza faça a sua parte. Esse sempre foi o lema deste espaço.
Localizado no que era o Parque de Santa Gertrudes, o jardim original da Fundação Calouste Gulbenkian “foi feito nos anos 60, com projeto de dois arquitetos paisagistas da primeira geração, António Viana Barreto e Gonçalo Ribeiro Telles, que na altura eram bastante jovens”, conta a responsável. “Havia condições para se fazer o que se queria, ou seja, havia disponibilidade económica e uma equipa”. E o que eles decidiram foi contrariar a tendência da época para imitar os jardins franceses ou ingleses, todos muitos aprumados, e “mostrar como é um verdadeiro jardim português”, aproveitando a vegetação já existente no parque, que “foi deliberadamente mantida”, a que se juntaram, “essencialmente, mas não exclusivamente, plantas espontâneas da paisagem portuguesa”. Estas foram utilizadas “não de forma geométrica, mas reproduzindo a estrutura que existe na paisagem, isto é, com áreas abertas, de clareiras, que se sucedem a áreas fechadas, de bosque”. O resultado foi este jardim, por onde passeamos aos ziguezagues, sentindo-nos quase no meio de uma floresta, longe de toda a balbúrdia da cidade, para, logo a seguir, encontrarmos espaços relvados, ideais para nos deitarmos ao sol, tirar os sapatos, ler um livro, namorar ou simplesmente descansar.
Quando o edifício do CAM foi concebido pelo arquiteto britânico Leslie Martin, em 1983, criou alguma controvérsia ao impor-se como uma barreira, “um fecho cego” do jardim. Em 2005, a fundação adquiriu dois hectares do jardim do Palácio Vilalva, contíguos ao seu parque, e, em 2019, abriu um concurso para projetos que repensassem a relação do edifício do CAM com esse novo espaço. O arquiteto japonês Kengo Kuma foi o vencedor do concurso. Kuma recriou o edifício aumentando as janelas e as transparências, para sul e para norte, e, inspirado no conceito de Engawa, um elemento da arquitetura tradicional japonesa que estabelece uma ligação harmoniosa entre o interior e o exterior, acrescentou-lhe uma pala de 100 metros de comprimento, criando uma espécie de enorme alpendre que une o edifício à nova área do jardim.
Coube então ao arquiteto paisagista Vladimir Djurovic, do Líbano, imaginar como deveria ser este espaço ao ar livre, trabalhando em colaboração com Kuma e inspirando-se na linguagem do jardim existente. Assim, foram mantidas as grandes árvores que já lá havia, como carvalhos, sobreiros e azinheiras, a que se juntaram novas plantações e, tal como já tinha sido feito há décadas, “foram utilizados agrupamentos de vegetação que são característicos da paisagem portuguesa”, explica Paula Corte-Real. “Djurovic fez questão que todas as plantas trazidas fossem autóctones da região de Lisboa. Foi mais fundamentalista do que os arquitetos paisagistas dos anos 60, mas a lógica é a mesma”, sublinha. As plantas foram colocadas de acordo com um desenho bastante naturalista, com o objetivo de “reproduzir os ecossistemas naturais e o seu funcionamento”. O objetivo de Djurovic era criar uma “mata urbana”.
Isso irá acontecer, mas, neste momento, o jardim ainda está numa fase, digamos, adolescente: não é um jardim completamente novo, mas ainda não é adulto. Numa primeira visita, o que chama a atenção é o muro em volta ser muito baixo. “Os arbustos junto ao muro vão crescer, ganhar corpo e vão proteger mais o espaço”, antevê Paula Corte Real. Mas, por agora, a divisão entre o jardim e a rua é muito ténue. “Houve muita contestação por parte da sociedade civil à destruição do muro, mas a verdade é que ele não tinha um valor patrimonial assim tão relevante e a fundação preferia ter um muro baixo, para criar uma relação com o espaço exterior. Então, surgiu a ideia de tentarmos utilizar as pedras do muro antigo. Na avenida Sá da Bandeira, o muro foi rebaixado; na Marquês da Fronteira é um muro novo, mas foram utilizadas as mesmas pedras, cortadas. Foi uma obra de engenharia difícil, mas valeu a pena. As pedras são muito bonitas e conseguimos manter um pouco da história daquele muro”, explica a arquiteta. Quem passa na rua vê o jardim, quem está no jardim vê Lisboa. O muro, mais do que uma divisão, é “um convite a entrar e desfrutar”.
A meio do processo, a Câmara de Lisboa pediu para comprar uma faixa de terreno para alargar o passeio na rua Marquês da Fronteira, o que foi mais um desafio para os arquitetos. O muro ganhou uns banquinhos do lado de fora e foi preciso garantir que as árvores que estavam no jardim se mantinham no espaço público. “Mas o resultado foi uma surpresa, também para mim”, admite Paula Corte Real. “Ficou uma praceta mais ampla e acolhedora.”
“A ideia é que as pessoas não se sintam intimidadas a entrar e acho que estamos a conseguir”, diz a arquiteta paisagista. O novo jardim está agora a ser descoberto pela população. Com várias portas de acesso às ruas, uma ligação à zona mais antiga do parque da Gulbenkian e a possibilidade de atravessar o edifício do cam, o novo espaço oferece-se à cidade e são muitos os que o utilizam simplesmente como passagem, por ser a maneira mais rápida de chegar ao outro lado do quarteirão. Há um movimento constante de gente apressada, que corre para o autocarro, aproveitando aqueles metros de caminho no alpendre para respirar fundo antes de mais um dia de trabalho.
Mas também há quem venha com calma. Não é preciso querer visitar o CAM nem ver qualquer exposição. Mesmo não havendo zonas relvadas, o jardim começa aos poucos a ser vivido. Há quem ali vá à hora do almoço para comer num dos vários bancos de aço de cor ocre, para passear pelos caminhos ondulantes, para apanhar sol nas cadeiras junto ao lago ou para ficar à sombra do enorme plátano. Ou apenas para admirar a Engawa, aquela pala enorme que cria uma espécie de “praça pública”, um ponto de encontro entre quem sai e quem entra do cam, onde se espera que haja atividades e brincadeiras. Além disso, a pala já revelou ser útil quer para os dias de chuva quer para os dias de muito calor.
Para já, ainda é muito visível a diferença entre o jardim antigo e o novo, sobretudo pela densidade da vegetação. Porém, à medida que as plantas forem crescendo, Paula Corte-Real acredita “que se vai sentir que é um espaço uno”. A cada estação, o jardim vai modificar-se, ganhar novas cores e cheiros. “Com o tempo, ganha uma vida própria, as plantas desenvolvem-se, vai aparecendo fauna naturalmente, porque tem alimentação e refúgio. Vai ser interessante vê-lo a ser ocupado. Já temos libelinhas, borboletas, abelhas, aves pequeninas, e progressivamente hão de vir rãs, aves maiores, que vão passar a fazer ninhos.” E, quem sabe, também os patos apareçam.