Nos últimos anos abriram em todo o país centenas destas lojas de venda a granel com uma missão: acabar com o plástico e reutilizar embalagens.

O cheiro pode ser um bom convite. Na loja de Eunice Maia há muita gente que entra porque, mesmo à porta, coladas à montra, estão as especiarias. Como estão em caixas de acrílico transparentes, que se abrem e fecham a cada cliente que se quer servir de uma delas, tirando pazadas sem peso certo, o aroma espalha-se e conquista. Um pouco por todo o país, multiplica-se o comércio que vende a granel e, sejam ingredientes secos de despensa ou produtos de limpeza e higiene, esta tradição antiga ganha hoje uma renovada importância por causa da emergência climática.

Na Maria Granel, em Campo de Ourique, Lisboa, a posição das especiarias é estratégica. “Há gente que entra porque o aroma os chamou; outros, porque sabem que temos produtos certificados; outros querem experimentar algo específico. E depois há aqueles que já perceberam a vantagem de não ter caixas”, conta Eunice Maia, que abriu a primeira loja da Maria Granel em 2015, em Alvalade. Começou quando não havia ainda, na capital, este “novo granel”, em que a venda ao peso tem consciência ambiental. A fazer-lhe companhia estavam apenas instituições do passado.

Nos anos 80, quando Elisabete começou a trabalhar na ervanária Rosil, as filas de clientes adensavam-se à hora do almoço. “Chegávamos para abrir a loja às 15h, e as pessoas achavam que éramos clientes e queríamos passar à frente”, recorda. Nesta ervanária na baixa de Lisboa, fundada em 1950, as paredes continuam forradas a gavetas de madeira e vidro. Dentro de cada uma, há uma folha seca diferente para infusões: papel de parede 100% natural e muito medicinal.

A confiança dos clientes ganhou-se caso a caso, ouvindo, aconselhando mas não impingindo. “Era mais fácil as pessoas virem a uma ervanária. Não havia os supermercados e tudo se comprava a granel”, diz Elisabete sobre os anos 80. Nada se inventa. E também a técnica das especiarias à porta é antiga. “O nosso aroma é genuíno. Outras casas precisam de pôr sprays; nós temos a qualidade das ervas”, sentencia.

O problema de peso: o plástico

A tradição evoluiu: os métodos são antigos, as motivações são diferentes. Mais do que nunca, o granel significa também frascos de vidro em constante trânsito entre casa e lojas, embalagens de detergente a serem reutilizadas, tudo metido num saco de pano. O que antes se fazia por falta de recursos – a granel comprava-se só o que fazia falta para que nada se estragasse em casas, por exemplo, sem frigorífico – hoje faz-se para diminuir a pegada ambiental.

Os números da Comissão Europeia sobre o plástico são expressivos. Estima-se que existam nos oceanos mais de 150 milhões de toneladas de resíduos, dos quais metade é plástico descartável. Entre os objetos descartáveis que mais aparecem nas praias estão as garrafas, as embalagens de alimentos ou os sacos de plástico. Quanto a cotonetes, palhinhas ou talheres de utilização única, há marcas a criar alternativas duráveis – também à venda nestas lojas. Segundo a plataforma agranel.pt, são cerca de 300 em todo o país.

A embalagem intemporal é o símbolo do cliente responsável. E há uma na Delta que cumpre este propósito com todas as letras: a lata comemorativa dos 60 anos da marca replica as primeiras em que se vendeu o café moído. Com as cores da bandeira portuguesa e uma simulação do metal gasto, estão à venda nas lojas Delta The Coffee House Experience e podem ser compradas vazias para encher nestas mesmas lojas uma e outra vez, diz Miguel Peralta, responsável pelo Desenvolvimento do Negócio.

Aqui o processo de torra do café e a concepção dos blends é feita no meio da loja, à frente do cliente que pode até personalizar o seu café, escolhendo as origens e percentagens de arábica e robusta. É tudo uma questão de tempo – do cliente para a torra, que demora entre 20 minutos e várias horas. “Quando abrimos as lojas [em 2021], a ideia era que os clientes pudessem ter uma experiência diferente, de slow coffee em casa”, explica Clara Melícias, da direção de lojas. Um café escolhido e processado artesanalmente só poderia ser embalado e transportado assim: sem plástico ou, para aqueles que não se esquecem da lata, lembrando o antigamente.

É preciso aceitar o esquecimento. Marta Cerqueira já se martirizou mais por se esquecer dos frascos em casa ou por reparar que já não há massa mesmo em cima da hora do jantar – o que acaba numa ida ao supermercado. Com altos e baixos, compra a granel há cinco anos e viu a evolução do assunto no país. Como jornalista, registou o crescimento desta tendência e, envolvida nas questões de sustentabilidade, acabou por criar a plataforma online Peggada.com, um diretório que aproxima os clientes dos negócios mais ecológicos.

Hoje é fácil encontrar marcas portuguesas que vendam, por exemplo, detergentes biodegradáveis. “Se não temos mais coisas é porque ainda temos uma lei do granel muito desatualizada, que impede a venda de azeite ou de arroz”, exemplifica Marta.

A tradição e a sustentabilidade entram numa mercearia

No Minho, onde nasceu e cresceu, “até a bolacha maria se comprava a granel e sempre se levou o saco à padaria para encher de pão”. Nos últimos cinco anos, começou a notar que muitas lojas antigas mantinham essa opção. O granel não é exclusivo destas lojas-tendência, mas foram elas que empurraram os gigantes dos supermercados a ter alguma oferta a granel, nota Marta, que aponta o exato momento desta “reviravolta”: “a Maria Granel conseguiu criar mesmo uma comunidade e tudo o que se comprava no supermercado conseguia comprar-se lá”.

“Eu não fazia ideia daquilo em que me estava a meter”, confessa Eunice Maia sobre o início da Maria Granel. “Venho de um paradigma consumista. Ao longo da vida fui perdendo a ligação ao campo, ao que faziam os meus pais, lavradores. A Maria Granel levou-me a uma reflexão sobre os efeitos dos meus gestos. Tem sido uma caminhada longa e imperfeita”, resume.

A norte, não é diferente. Para Mariana Guerra, a venda a granel não só está ligada à motivação sustentável como a outra causa: o veganismo. A loja que criou durante a pandemia, Mercearia 100 Saco, veio resolver um problema do Porto: “faltava um sítio onde se pudesse entrar e não houvesse crueldade animal”, afirma. 

É professora de física e matemática e há um ano que tem esta outra motivação pedagógica. “Não estamos aqui para converter ninguém, estamos aqui para conversar”, diz. E o granel presta-se a isso, todos os lojistas concordam: é um comércio de proximidade em que, sem rótulos para convencer alguém, é preciso conhecer o cliente, recomendar e aconselhar. E como não há embalagens de tamanhos familiares, cada um “pode levar só um bocadinho para experimentar”, nota Mariana, “sem que isso signifique que, se correr mal, o produto acaba no lixo. Muita gente nos diz que evita desperdício”.

Na Mercearia 100 Saco pesam-se leguminosas e frutos secos ou produtos mais específicos de uma alimentação vegana, como a levedura nutricional. “É fácil encontrar fornecedores de produtos vegan a granel porque já estão despertos para estas questões”, conta. Em Guimarães, Sofia Araújo concorda: vender a granel é uma oportunidade para ter produtos diferentes e há um grupo de clientes ligado a uma alimentação dita saudável que é aventureiro.

Como reconhecer um cliente de granel?

Com duas amigas – Maria Donas e Daniela Gomes – Sofia criou a Mercearia do Avô, uma loja online a granel. A recolha das compras é feita no armazém e as embalagens são sempre frascos reaproveitados ou embalagens de detergentes. Conseguiram mobilizar uma comunidade que acumula estas embalagens e as entrega no armazém –  ou são os próprios clientes a querer levar o jarro do costume. “Quando as pessoas começaram a juntar frascos em casa para nos darem, é que notaram a quantidade de lixo que fazem. Diziam “até me dá pena deitar fora”, recorda Sofia.

A loja online não significa, portanto, uma relação distante dos clientes, e a pressão de não desiludir está presente. “Sobretudo com os produtos de higiene, temos mesmo de testar tudo pessoalmente e até dar a amigos. Só vendemos produtos naturais e biodegradáveis, e isto significa que a adaptação ao produto varia de pessoa para pessoa, mas precisamos de saber se é eficaz”, diz.

Há quem nunca chegue a adaptar-se a um champô sólido, que não precisa de frasco, ao contrário do líquido, mas enquanto houver frascos de vidro de uso inesgotável, a alegria desse consumidor de cabelo sedoso está garantida. Se ouvir o som dos potes a bater uns nos outros, dentro do saquinho de pano, é possível que ele esteja a passar por si.