Separados pelos mais de 200 quilómetros que vão de Campo Maior a Lisboa, Rita Nabeiro e Bruno Nogueira sentaram-se virtualmente à mesa para uma boa conversa. Falou-se sobre a carreira, a pandemia, a inspiração e a beleza do universo pimba. Só ficou mesmo a faltar um copo de vinho.

Não sei se te recordas, mas há cerca de dez anos estiveste aqui em Campo Maior num almoço, devias ter uns 20 e tal anos… 

Sim, uns 28, 29.

 

A tua carreira cresceu muito entretanto, na área do humor e não só, mas o que eu gostava de saber não é tudo aquilo que mudou desde essa altura, mas sim aquilo que não mudou. No que é que te manténs igual? 

Diria que o que não mudou é aquilo que eu não quero fazer. Continuam a ser mais as coisas que não quero fazer, com as quais não me identifico, do que aquelas que quero fazer. Artisticamente, continuo a querer que o meu trabalho seja um reflexo dos tempos que se vivem: que um dia mais tarde, olhando para trás, eles coincidam de alguma forma com aquilo que eu queria dizer ao mundo naquele momento, e não com aquilo que achava que ia vender ou ter mais impacto. Nesse aspeto, tive sucesso – e isso é um privilégio, porque muita gente pensa assim mas depois não o consegue fazer na prática. Fui muito afortunado por ter a liberdade de me manter fiel àquilo que admiro num percurso artístico.

 

Hoje em dia, acho que toda a gente conhece o Bruno Nogueira. Mas naquele almoço de há dez anos lembro-me de alguém te ter perguntado: “Então e o senhor, o que é que faz?” Recordas-te disso? 

Sim, e não há nada mais refrescante, porque significa que estão a olhar só para uma pessoa. É uma coisa que já não ouço há algum tempo.

 

Tu respondeste-lhe que eras ator. Vês-te mais como ator ou como humorista? 

Depende da fase. Há alturas, anos mesmo, em que claramente me dedico por inteiro ao meu lado de ator, outros ao de argumentista e criador, e outros ao de humorista puro e duro. Quando em televisão me perguntam o que pôr no oráculo, tenho sempre dificuldade em responder, prefiro que ponham o que entenderem que eu sou naquele momento, e depois logo se vê. (Risos.)

 

Como te compreendo. Eu sou formada em design de comunicação, depois comecei a trabalhar com a minha família, agora estou na área dos vinhos, e neste momento estou a fazer-te uma entrevista… 

E não é bom? É ótimo.

 

Os projetos a que decides dedicar-te têm alguma coisa em comum? 

O que me leva a aceitar um projeto tem que ver, em 90% das vezes, com pessoas. Não concebo trabalhar com quem não consiga ter um diálogo artístico ou com quem não esteja no mesmo comprimento de onda. Quer sejam projetos de stand-up, música, teatro ou televisão, trata-se de juntar um grupo de pessoas que para mim são muito valiosas, ou então ir ao encontro da ideia de um realizador ou encenador com o qual partilho uma visão artística ou uma forte relação que vai para lá do trabalho e com quem quero arriscar aquele caminho. 

“Há uma série de coisas que, modéstia à parte, eu sei que consigo fazer bem e a essas não me interessa voltar tão cedo. Interessa-me fazer outras coisas que me desafiem, em que haja uma vertigem, que possam a qualquer momento correr mal.”

Tenho saudades do Último a Sair, por exemplo. Acho que o humor em Portugal está um pouco adormecido e programas como esse fazem falta. A sensação que dá, ao ver-te trabalhar com as pessoas que escolhes, é que vocês se estão sempre a divertir. 

“Play” significa representar, mas também significa brincar, não é? Quer seja em humor ou em tragédia, representar é uma oportunidade de brincar. É só uma versão um bocadinho mais evoluída do que as crianças fazem. No Último a Sair, em particular, o grupo escolhido era muito especial, e portanto, sim, estávamos a divertir-nos, embora tenha dado um trabalho tremendo. A mim pagam-me mais pelos momentos em que estou à espera ou em que estou a escrever do que propriamente pelos momentos em que estou a fazer. Fazer é a parte divertida. 

 

Tens alguma personagem que te tenha marcado ou te tenha dado mais gozo? 

Curiosamente, uma das que mais me marcou nada tem que ver com comédia. Fiz uma peça chamada Azul Longe nas Colinas, no Teatro Nacional, com encenação da Beatriz Batarda. Basicamente, era um grupo de crianças que eram representadas por adultos, fazíamos todos de miúdos de 7, 8 anos. E era trágico, eu morria no final, queimado. Aquela peça marcou-me muito porque era o desafio máximo: estava vestido de miúdo e falava à miúdo, e se transportar o espectador para aquele imaginário já é difícil, então para alguém que costuma fazer comédia mais difícil é. Se alguém se risse no momento em que eu morria, era terrível para o espetáculo inteiro. Essa foi a personagem que mais me marcou, porque isso não aconteceu uma única vez. Deu-me um prazer enorme ir para a zona mais desconfortável que podia ter escolhido naquele momento. Era um desafio pessoal, mais do que profissional. 

Dirias que o humor é a tua zona de conforto? 

Sim, mas mesmo no humor interessam-me as coisas que não sei se vou conseguir fazer bem. É um bocado masoquista, ao mesmo tempo. Modéstia à parte, há uma série de coisas que sei que consigo fazer bem e a essas não me interessa voltar tão cedo. Interessa-me fazer outras que me desafiem, em que haja uma vertigem, que possam a qualquer momento correr mal.

 

O que é que ainda não sabes fazer e gostavas de aprender? 

Tanta coisa. Realizar, encenar, dançar. 

 

Dançar algum estilo em particular? 

Não, não… Não é uma coisa que eu domine, de todo. É tão distante da minha zona de conforto que me atrai – atrai-me enquanto espectador. É uma zona perigosa para mim e portanto interessa-me. Assim como a escrita de um texto para teatro ou de um argumento para cinema… Há várias coisas que ainda não fiz e que não sei minimamente se me vão correr bem, mas sei que algumas delas terei de experimentar.

 

Em que é que te inspiras para criar? 

O Miyazaki, que é realizador de anime japonês, tem uma boa frase para isso que diz que a inspiração é uma espécie de anzol que deixas no cérebro, e depois esperas. É relativamente fácil ter ideias, mas as boas ideias surgem num estado de contemplação em que tu tens de estar atento quando elas passam por ti. Não és tu a conduzir, é aquilo que te vem buscar e tu aceitas ir nesse vórtex que é a ideia. Sempre que tentei parir à força uma ideia, nunca correu tão bem como podia correr. O Sara, o Último a Sair ou a Odisseia foram tudo coisas que vieram ter comigo: às vezes é uma imagem, às vezes é uma sensação enquanto espectador de gostar de ver determinada coisa e sentir essa falta, outras vezes é a desconstrução de qualquer coisa que já existe como estabelecido e, logo à partida, para mim é um desafio desmontar isso. Quando aparece essa imagem, ou quando essa ideia fica presa no anzol, é dar um período de quarentena de 10 ou 15 dias para ver se ao fim desse tempo a ideia continua boa. Porque há um entusiasmo natural quando se tem uma ideia e se acha que é a melhor do mundo, mas às vezes passada uma semana…

 

E partilhas essa ideia com outros? Eu gosto de partilhar, mas às vezes é arriscado. 

Sim, tens de saber com quem partilhas, porque podem desmotivar-te por ser a pessoa errada a ouvir, ou porque tu ainda não amadureceste a ideia o suficiente e, apesar de na tua cabeça fazer sentido, quando a verbalizas fica aquém do que queres fazer. Portanto, às vezes partilho logo com pessoas que sei que conseguem somar o que falta, mas, para mim, dou sempre uns dez dias para ver se ao fim desse tempo ainda vale a pena.  

“É, de certa forma, baralhar as pessoas de maneira a que elas se deixem levar. E de repente estão engravatadas, no São Luiz, a cantar, do princípio ao fim, Quim Barreiros ou Ágata.”

E a síndrome da folha em branco. Como é que se resolve? 

Pois, às vezes resolve-se da pior maneira: preenche-se só com palavras para não ir em branco. Acontece-me às vezes com o Tubo de Ensaio, quando sou eu a escrever, porque não existe um período de contemplação para amadurecer. Eu gosto muito de trabalhar em equipa e de juntar as pessoas que acho que têm características que vão acrescentar àquele determinado projeto – que são diferentes de um projeto para outro. Portanto, é menos comum essa síndrome da folha em branco, porque eu gosto de pensar em equipa, isso facilita a criação e a dinamização, cria-se ali energia muito própria em que uma pessoa alimenta outra. Quando tenho de escrever uma coisa sozinho, pode ser muito penoso.

 

Tu vais aparecendo e desaparecendo, e surges em formatos diferentes. Achas que isso ajuda a manter a frescura do lado criativo? 

É-me muito fácil fazer isso porque tenho outras prioridades e porque gosto, de facto, dessa ideia de ter tempo para pensar. Parece uma ideia luxuosa, e é, isto de ter tempo para pensar. O recolhimento para mim é uma coisa importante e muito natural porque eu canso-me de me ver e acho que posso estar a cansar as pessoas. Gosto de sair de cena antes de isso acontecer.

 

Para um humorista deve ser difícil lidar com o receio de perder a piada. Calculo que já tenhas pensado nisto. 

Todos os dias.

 

Se a premissa da série Sara, com as devidas diferenças, te acontecesse, ou seja, se tal como Sara deixou de ser capaz de chorar, tu deixasses de ser capaz de fazer rir, como achas que reagirias? 

Era trágico, eu não sei fazer muito mais coisas para ganhar a vida. Para mim seria insuportável, e não só profissionalmente. Sem sentido de humor, o mundo torna-se intolerável. Não consigo conceber um universo em que não tenha essa arma, não só para trabalhar mas também para encarar os dias.

Tu fazes rir muita gente, mas quem é que te faz rir a ti? 

Não muita gente, sabes? Isto é muito triste. (Risos.) Tenho um amigo meu de infância que está sempre mal disposto e que me faz rir muito, mas pelas piores razões, porque ele está sempre mal, está sempre tudo mal na vida dele. O meu pai faz-me rir bastante. É do Norte e tem muitas expressões que acabei por adotar e grande parte do sentido de humor que tenho, da ironia, nasce na família do lado do meu pai. Depois, profissionalmente há várias pessoas que me fazem rir: os Monty Python foram muito importantes para mim; o Dave Chappelle, que voltou agora, já era muito importante para mim; o Ricky Gervais quando criou o Extras ou o Office e me deu essa nova linguagem. Houve muitas dessas coisas que transportei para o meu trabalho. O Richard Pryor, o Eddie Murphy do início no stand-up. Há assim uma mistura de várias coisas que me fazem rir, se calhar épocas de várias pessoas e não um todo.

 

O que é que te atrai no universo de Som de Cristal e de Deixem o Pimba em Paz? 

Atrai-me, mais uma vez, aquilo que está debaixo da camada que toda a gente vê. Toda a gente compartimenta aquilo como sendo música pimba, popular, bimba. Depois há o fenómeno por trás disso, que é: quando essa música toca num casamento ou numa festa, toda a gente sabe a letra. Ou seja, as pessoas sentem uma certa sobranceria em relação a esse tipo de música, mas provavelmente sabem mais letras do que de outras bandas menos popularuchas. E, portanto, gostava de conhecer aquelas pessoas. Não só conhecê-las, no caso do Som de Cristal, mas também perceber – como percebi – que é preciso ter-se cem vezes mais motivação e coragem para seguir aquele sonho do que eu preciso para seguir o meu. Porque estou numa realidade dourada, comparada com a deles. Vi o Marante vestir-se num barracão onde estavam sacos de cimento e ração de animais, a subir para o palco pela frente sem glamour nenhum, numa festa popular. Ou o Nel Monteiro a atuar ao lado de um cemitério, o que tem um lado muito cómico, mas ao mesmo tempo é duro. E o Deixem o Pimba em Paz nasce de: “OK, se as pessoas conhecem as letras mas renegam a música, se as enganarmos e lhes dermos uma versão mais cuidada, meio jazz, meio pop, e se o palco tiver uma imagem diferente, o que é que acontece?” E o que acontece é aquilo que eu esperava: as pessoas conhecem e gostam e permitem-se gostar de uma coisa que não fui eu que as pus a gostar, porque elas já gostavam.

EM DEIXEM O PIMBA EM PAZ, TENTA DESCONSTRUIR O PRECONCEITO ASSOCIADO A ESSE GÉNERO MUSICAL.

Dá-te gozo desconstruir os preconceitos? 

Sim. É tu limpares um bocadinho aquelas opiniões formadas sobre assuntos em que as pessoas não pensaram muito – e se calhar também não é um assunto que mereça grande pensamento. Mas é, de certa maneira, baralhá-las de maneira a que elas se deixem levar. E, de repente, estão engravatadas no São Luiz, a cantar, do princípio ao fim, Quim Barreiros ou Ágata.

 

Não resisto a fazer-te uma pergunta sobre a tua ligação à Delta. Lembras-te quando protagonizaste, em 2010, um anúncio com a Elisabetta Canalis? 

A namorada do George Clooney, à época.

 

Pois, tenho de te perguntar: sentes-te responsável pelo fim da relação? (Risos.) 

Sim, sim, acho que ela ficou muito transtornada comigo, e eu entendo, não é? Percebo. Ela era muito simpática, mas eu creio que não tivemos grande… Ela já estava num patamar em que já estava em bolha. Fazes as coisas, mas tens uma bolha invisível à tua volta.

 

Sentes que às vezes crias essa bolha também? 

Não, não… Quer dizer, é possível que crie. Estou a dizer que não, mas é possível que aconteça. Quando estou em família, num sítio público, é muito claro que essa bolha existe e é a única altura em que não aceito tirar fotografias. Acho que a família não tem culpa nenhuma e não tenho de estar eu a ser emprestado àquela mesa e à outra. 

 

O Nuno Markl fez um anúncio para a Delta em 2006. Tu fizeste um em 2009 e outro em 2010. Achas que o Filipe Melo devia ser a nossa próxima aposta? 

Vocês ficariam certamente a ganhar. O Filipe é um criador extraordinário, além de ser muito boa pessoa, portanto, não há muito por onde falhar.

 

Eu conheço-o, nota-se que ele é um bom ser humano. E vocês funcionam bem também por isso: tu tens esse lado mais distante, do humor; o Markl tem aquele perfil bonacheirão e vocês gozam todos com ele… 

Sim, o Markl não sabe dizer que não e isso é um perigo para a vida dele e para a profissão dele, porque está sempre tudo bem. Perguntas uma coisa e ele diz que é ótimo, perguntas o oposto e ele acha que é ótimo. Acho que, mais cedo ou mais tarde, vai descobrir-se que ele matou alguém. Acho que ele está a tentar encobrir alguma coisa, não é possível que ele seja assim tão bonzinho.

EM 2010, PROTAGONIZOU A CAMPANHA DELTA Q COM A ATRIZ ITALIANA ELISABETTA CANALIS.

Falemos de Como é Que o Bicho Mexe. Quais eram as expectativas e a que distância estão agora da realidade? 

O Bicho nasce sem expectativas, apenas para resolver um problema meu. Eu estava sozinho com três crianças, a minha mulher estava a filmar em Inglaterra, tinha sido declarada a pandemia e eu não tinha ajuda cá em casa sequer, e portanto estávamos só nós: a cozinhar, a limpar, a fazer camas, a lavar roupa, eram isto os meus dias. Sendo que uma das crianças é muito pequena, tinha cinco anos na altura, por isso acresce cuidar dela e criar-lhe estímulos. Ao fim do dia, a única coisa que me apetecia era beber um copo de vinho e falar com adultos. Um dia fiz isso: liguei e falei com o Markl, falei com o Filipe. Tinha a ideia de que queria fazer qualquer coisa naquele canal e foi-se criando o hábito e a necessidade em mim de estar com as pessoas todas as noites. E as pessoas começaram a adotar aquele programa, chamemos-lhe assim, como uma espécie de medicação para o pânico e a incerteza. Acho que o que aquilo fez foi normalizar toda a gente e mostrar que todos estávamos com os mesmos medos, as mesmas preocupações, as mesmas dúvidas, independentemente de seres músico, ator, caixa de supermercado ou enfermeiro. Começaram a juntar-se ali umas quantas pessoas que tinham dúvidas, e que queriam conversar.

 

Deves receber muitas mensagens e não deves conseguir ler muitas delas. Mas sabes se tiveste impacto direto em alguma pessoa em particular? 

Várias. Devo-te confessar que tive de parar de ler algumas porque ia-me muito abaixo com as mensagens. São realidades tão distantes e tu estás a fazer aquilo para te divertires e para divertires as pessoas. Lembro-me de um médico que ia ser pai e não ia poder ver o nascimento nem estar com o filho recém-nascido, porque estava na linha da frente do combate à covid logo no início, e só via o filho por FaceTime. E de pessoas que tinham acabado de perder um familiar e, em vez de poderem sair de casa, respirar e estar com pessoas, de repente viram-se confinadas no espaço onde aquela pessoa também vivia e dormia e… Aquele era o único momento em que aquelas pessoas podiam esquecer-se um bocadinho do que estava a acontecer. Muitas pessoas contaminadas também, que estavam assustadas. Lembro-me de uma pessoa que perdeu a mãe nessa altura e que continuava a ver-me porque via aquilo com a mãe, sentia que podia reencontrar-se com ela porque a sentia de alguma forma a rir-se ali com ela. Foram muitas coisas… Agora, quando eu voltei, foi por se começarem a somar muitas coisas. Apesar de, como falámos, ter uma estratégia e precisar de me retirar, não consigo que este projeto em particular – que não é projeto, são conversas – esteja ao abrigo de uma estratégia. Porque eu podia não aparecer mais e aquilo estava feito. Mas é tão pouco aquilo que eu faço comparado com aquilo que eu sinto que ofereço às pessoas que não consigo pensar dessa maneira.

 

Acho que sem essa intenção criaste uma dimensão de responsabilidade social. 

É um dano colateral, não um objetivo primeiro.

 

Como é que estás a lidar com a pandemia nesta fase? 

Devo confessar que esta fase, embora me assuste menos, me preocupa mais. Esta é a fase em que toda a gente acha que já sabe mais ou menos como é que isto funciona. A primeira vaga tinha aquela coisa do pânico, que não é boa, mas que pelo menos faz com que tenhas um maior respeito pelo vírus e por tudo o que está a acontecer. Desta vez, acho que as pessoas se cansaram, o que é normal porque estão há muito tempo a abdicar de muitas coisas, de estar com familiares, por isso estão mais dispostas a arriscar. Eu próprio já não tenho o mesmo pânico que tinha no início.

“A minha prioridade sempre esteve bem definida: é estar na família e não na profissão. Isso já me trouxe alegrias, mas dissabores também, porque às vezes o grau de compromisso encurta um bocadinho e só estou disposto a ir até um determinado ponto.”

Preocupas-te mais contigo ou com os teus? Eu tenho os meus quatro avós, sou uma sortuda. Preocupo-me sobretudo por eles.

Sim, acima de tudo preocupo-me pelos que são de risco: pelos meus pais e a minha irmã, que é asmática. Numa fase da vida em que deviam estar mais próximos do que nunca dos netos e dos filhos, é a fase em que lhes é retirado isso. É um duplo soco que não é fácil, não é fácil para ninguém, mas em particular para os mais velhos é um duro golpe.

 

E vinho, precisas de dicas para reforçar o stock?

Preciso sempre, eu percebo muito pouco de vinho. Quando provo vinho, sei quando gosto e quando não gosto. Agora quando começam a falar de taninos, não sei, aí já me perderam.

 

Reparei que bebes mais brancos do que tintos. Tens alguma coisa contra tintos?

Não, comecei a beber branco porque é mais fresco, apetecia-me, e depois já ia tarde para trocar. Só bebi tinto uma vez, no último direto antes de ir para a rua, no de Natal.

 

Se precisares…

Obrigado, Rita.

 

Quando ultrapassarmos isto, o que achas que vai ficar de diferente em ti e nos outros?

Nos outros, sendo muito honesto, acho que pouco. Estava no outro dia a ler um artigo na National Geographic de uma cientista que já trabalhou com vários casos de propagação de vírus e ela diz que em todos deles há uma amnésia geral mal acaba. Há uma grande vontade de mudar o mundo quando acontece, mas depois conseguiste sobreviver e a tua vida segue como antes. Portanto, infelizmente, acho que pouco mudará. Talvez mudem pequenas coisas, como as pessoas estarem cada vez mais em teletrabalho, porque se percebe que isso é mais rentável para as empresas. Haverá assim umas mudanças que não são para o planeta, são para resolver algo imediato. Em mim, não sei, não posso dizer que seja muito diferente das outras pessoas, embora gostasse que mudasse muita coisa. A minha prioridade sempre esteve bem definida, é estar na família e não na profissão. Isso já me trouxe alegrias, mas dissabores também, porque às vezes o grau de compromisso encurta um bocadinho, porque só estou disposto a ir até um determinado ponto. Não sei o que vai mudar, mas sei que essa vontade de fazer só aquilo em que eu acredito plenamente vai afunilar, porque a vontade de dar atenção a outro tipo de coisas vai sendo cada vez maior.

 

Como é que podemos evitar esse estado de dormência pós-pandemia?

É a memória não ser curta. É tu tentares que o primeiro momento de confinamento se mantenha vivo na tua memória e que percebas o que é que te fez falta, o que te fez sentido, o que era fundamental e o que era acessório. O problema é que essa bolha tende a diluir-se ao longo do tempo e já não tens bem essa noção. Para mim é muito óbvio: é estar junto das pessoas de quem mais gosto. Não foi “que vontade que eu tinha agora de poder trabalhar!”. Isso aconteceu-me muito, muito mais tarde. Era poder fazer outras coisas: poder estar ao ar livre num jardim ou no meio de uma floresta, poder estar com pessoas de quem eu gosto. É tentar imortalizar esse momento de aperto, para o bom e para o mau.

 

Está perfeito, não acrescento mais nada. Muito obrigada.

Obrigado eu, Rita.