Foi no restaurante Darwin’s, na Fundação Champalimaud, que Rita Nabeiro se sentou à conversa com Leonor Beleza. Falaram da juventude e do entusiasmo no pós-25 de abril, do percurso na política e do que É ser mulher num mundo que ainda é maioritariamente de homens.
Se há tendência que atravessa toda a vida profissional de Leonor Beleza é a forma como sempre colocou o seu talento e a sua capacidade de liderança ao serviço de causas com um forte impacto social. Aconteceu assim nos anos 80 e 90, quando marcou a política portuguesa, sobretudo enquanto ministra da Saúde. Foi assim a partir de 2004, quando assumiu a enorme tarefa de construir do zero a Fundação Champalimaud. Continua a ser assim nas mais diversas atividades em que continua a envolver-se, seja como conselheira de Estado, seja como presidente da epis – Empresários Pela Inclusão Social –, em representação do Grupo Nabeiro, um cargo que no início hesitou em aceitar, mas sobre o qual hoje diz: “É uma coisa que me apaixona completamente.”
Essa capacidade de abraçar com o máximo empenho todas as atividades a que se dedica encontra-se nos exemplos mais simples. Apesar da complexidade da sua agenda e da exigência das suas várias funções, Leonor Beleza chegou pontualmente à hora marcada para a entrevista, teve o cuidado de cumprimentar individualmente todas as pessoas presentes e disponibilizou-se para uma conversa sem pressas e sem limite de horas.
É bisneta de Laurinda Moraes Sarmento, que se licenciou em 1891 em Medicina, tendo sido uma das primeiras médicas no país. Isto marca o seu percurso?
Marca, certamente. Entre ela e eu, é tudo mulheres: ela era mãe da mãe da minha mãe. Sempre ouvi contar esta história; as mulheres da família sentem-se orgulhosas com essa herança. A minha bisavó tinha mais duas irmãs médicas e outra engenheira. Era uma família muito fora do que eram as normas no Portugal de finais do século XIX.
No pré-25 de Abril, quando era jovem, a realidade das mulheres era bem diferente da que temos hoje. Depois da revolução, integrou a equipa responsável por alterar o Código Civil no sentido de legislar a igualdade entre homens e mulheres. Sente que deu o seu contributo para as novas gerações hoje beneficiarem dos direitos que têm?
Alguém daria. Quando aconteceu o 25 de Abril, na passagem de uma ditadura para uma democracia, houve muitíssimas coisas que se alteraram. Uma delas tinha que ver com a situação das mulheres, e também com a situação legal das mulheres – as duas coisas não coincidem necessariamente. Às vezes as leis andam à frente, como é o nosso caso hoje, isto é, as leis proclamam mais a igualdade do que os factos. Em 1974, eu era assistente na Faculdade de Direito, e pouco depois fui trabalhar para um organismo que se chamava Comissão da Condição Feminina. Tive o privilégio de ser colocada numa comissão que fez a adaptação do Código Civil àquilo que a Constituição na altura exigia. Tive a sorte de, muito nova – em comparação com os outros que estavam nessa comissão, que eram todos professores e profissionais consagrados do Direito –, participar nessas alterações. Elas refletiam o tempo que se estava a viver e, porque aconteceram na sequência de uma revolução, também se aproveitou a situação para ir um pouco mais à frente do que aquilo que seria exigido.
Leonor Beleza e Rita Nabeiro
Hoje em dia seria impensável, por exemplo, que uma enfermeira não se pudesse casar…
Nessa altura já não era assim, mas aconteciam coisas bastante extraordinárias nesse período, que entretanto tinham sido modificadas. Mas ainda havia a chefia da família pelo marido, em que o marido em termos legais tomava todas as decisões, mesmo em relação aos filhos. As mulheres tinham uma igualdade de direitos (não total, mas razoável) antes de se casarem; se se casavam, isso era profundamente alterado e os poderes passavam para o lado do marido.
Sente que lhe reconhecem esse trabalho hoje?
Não estou preocupada com o que alguém me reconhece. Acho que para as mulheres mais jovens é difícil imaginar a situação que existia nessa altura. Se as atuais alunas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa soubessem que, quando eu entrei para a universidade, as raparigas se sentavam à frente e os rapazes atrás, e que éramos muito menos do que eles, quando hoje são muitíssimas mais, achariam um pouco estranho. Era um ambiente muito diferente. O Direito que nós aprendíamos era um Direito discriminatório contra as mulheres. Naquela altura, em que muitos outros países já estavam a introduzir modificações e a igualdade começava a ser, também no Direito, uma realidade, aquele Direito já não “jogava” muito…
Ainda há muitos direitos por conquistar e há alguns que estão a retroceder.
Sim, nenhuma destas coisas é adquirida; as coisas andam para a frente e para trás. Em todo o caso, o Direito é uma coisa e a realidade às vezes é outra. O Direito pode ajudar à realidade, mas a realidade também pode resistir às igualdades todas. Vivemos num país em que sabemos que, todos os anos, um número elevadíssimo de mulheres morre na sequência de violência doméstica. É a coisa mais brutal, o limite maior de supressão de direitos e de não reconhecimento da igualdade. Este tipo de situações existe e não tem nada que ver com o Direito, que as reprova de todas as maneiras mas não tem força suficiente para as evitar. São outras mudanças que têm de acontecer.
“Era um convite absolutamente irrecusável. Era impensável que alguém a quem é proposta uma coisa destas tão extraordinária se pusesse com coisas.”
Não querendo centrar a entrevista no feminismo, mas sabendo que é uma referência…
Para mim, é uma questão permanente. Quando vejo uma fotografia de líderes reunidos, a primeira coisa que vou ver é ver quantas mulheres lá estão. E agora estão muito poucas. Na reunião do G7 que decorreu há pouco tempo, só havia uma mulher, que era a presidente da Comissão Europeia. Se vir o Conselho da União Europeia, há lá umas quantas, mas na verdade ainda é um mundo onde as mulheres têm uma presença reduzida.
O presidente Marcelo disse há pouco tempo que só quando uma mulher incompetente chegasse ao topo haveria verdadeira igualdade.
É uma coisa que dizemos há muito tempo porque, quando se discutem questões como se devemos ou não adotar medidas que obriguem a uma presença mais consistente das mulheres em órgãos coletivos, contrapõe-se muitas vezes a história da competência. “Isto deve ser em função da competência, não em função de ser ou não mulher.” O que pressupõe que haja aí um problema, que não há: hoje sabemos que não há nenhum problema de competência em geral. As mulheres que estão a sair da universidade, praticamente em todas as áreas, são mais do que os homens e muitas vezes com melhores qualificações. Não há aí um problema, nem depois na vida profissional. Mas é verdade que há gente competente e incompetente e também as mulheres podem ser incompetentes.
Quando entrou para a política, não havia muitas mulheres em cargos públicos. Como é que aconteceu?
Eu tinha 25 anos quando aconteceu o 25 de Abril. Já tinha participado, na medida em que era possível participar, sem muito risco ou muita dificuldade, em instituições que estavam preocupadas com alguma mudança. Mas quando se deu o 25 de Abril, os jovens da minha idade ficaram entusiasmados com a possibilidade de fazer coisas, e envolvi-me mais. Uns anos depois, o doutor Francisco Balsemão, primeiro-ministro na altura, convidou-me para membro do Governo, como secretária de Estado. Na altura, resisti um bocadinho porque achava que os meus filhos eram muito pequenos – estas coisas com que nós nos preocupamos… – e ele disse-me: “Então você anda aí a proclamar a igualdade e a necessidade de as mulheres participarem e agora vem-me com essa coisa? Não arranjamos aqui uma maneira?” E acabei por aceitar.
Foi a primeira secretária de Estado a ser chamada no feminino, por “secretária” em vez de “secretário”.
Na altura, as mulheres que tinham sido membros do Governo tinham sido designadas no masculino. Eu disse: “Ok, mas eu não sou secretário de Estado, quero ser secretária de Estado.” O general Ramalho Eanes, Presidente da República na altura, concordou, e nomearam-me no feminino e, mais tarde, quando fui ministra, já sabiam… Até já havia quem me dissesse a brincar: “Se um dia fores ministro, vai ser um sarilho porque vais querer ser ministra.” Na altura, era tão diferente… Agora não passa pela cabeça de nenhuma mulher estar no Governo e ser um problema chamarem-lhe ministra. Naquela altura ainda tive de dizer, algumas vezes, que só falava se pusessem o meu nome com “ministra” por baixo e não com “ministro”.
Acha que a viram com maus olhos?
Ao princípio. Mas a seguir a mim já não houve dificuldade nenhuma em que as mulheres fossem designadas no feminino, era perfeitamente normal.
Sente-se hoje mais apaziguada? Se estas coisas a mim me fazem confusão, imagino a quem estava a tentar conquistar os seus direitos legítimos, por si e por outras mulheres, ainda naquela idade em que tudo ferve por dentro. Hoje faria as coisas de forma diferente ou igual?
Em relação a estes temas, acho que fiz aquilo que podia fazer. Seria ridículo, com o meu passado já na altura e com a minha preocupação por estas questões, que não aproveitasse a situação para sugerir que as coisas fossem feitas dessa maneira. E as pessoas aceitaram isso lindamente.
Não resisto a fazer uma pergunta que detesto que me façam a mim. Como é ser mulher num mundo de homens?
Acho que os meus colegas ministros viam com muito agrado uma mulher sentada ao lado deles. Admito que tenham alterado um boca-dinho a linguagem – sabe que às vezes a presença de uma mulher evita que se usem certas palavras. Mas senti-me sempre bem acolhida. Agora, não tenho a mais leve dúvida de que muitas vezes eu sou tratada como mulher, antes de como outra coisa qualquer. Essas coisas vão-se gerindo… Lembro-me de uma vez, não há muito tempo, participar numa conferência científica internacional e suscitar uma grande admiração que “o” presidente da Fundação Champalimaud fosse uma mulher. Isto nos Estados Unidos. Às vezes não se espera que apareçam mulheres em certas posições.
“Não posso estar aqui sossegadinha à espera de que as coisas aconteçam – tenho a obrigação de fazer com que elas aconteçam.”
Na década de 1980, altura em que foi secretária de Estado e ministra da Saúde, faziam-se comparações entre o seu perfil e o de Margaret Thatcher. Porque acha que havia essa associação?
Não sei, acho que tinha que ver com um certo carácter afirmativo, imagino eu. A certa altura, no meu percurso, tive o privilégio de conhecer a senhora Thatcher e achei-a muito interessante. A primeira vez que falei com ela, numa visita a Portugal, era eu secretária de Estado da Segurança Social, ela perguntou-me como era cá a Segurança Social e eu expliquei-lhe. Ela disse-me logo que podia ser de outra maneira. Acho que era essa a abordagem dela: uma pessoa que reformava. Se estamos a falar de uma pessoa que reforma e quer fazer alterações, fico muito contente com essa identificação.
O que acha que deixou à Segurança Social, desse período?
O subsídio de desemprego com uma configuração semelhante àquela que tem hoje, por exemplo. A lei de bases da Segurança Social; uma muito maior intervenção descentralizada, no sentido de mais poderes atribuídos a quem estava mais perto das pessoas; o Estado fiscalizar a forma como atribuía subsídios. Enfim, tentei fazer umas quantas coisas. Foi um período muito difícil do ponto de vista social, porque foi entre 1983 e 1985 [durante o governo presidido por Mário Soares – Leonor Beleza tem a curiosidade de ter estado sempre no governo entre 1982 e 1990, com Pinto Balsemão, Mário Soares e depois com Cavaco Silva], durante a segunda intervenção do Fundo Monetário Internacional em Portugal. Foi uma fase muito dura, de pôr ordem nas finanças, com muito sofrimento entre muita gente. Mas foi um cargo onde gostei de estar, que me pareceu muito interessante, com um aparelho que funcionava. Deu-me muito gosto.
A fase seguinte foi enquanto ministra da Saúde.
Foi mais dura…
Esses momentos mais difíceis também nos fazem aprender. Que aprendizagens ficaram para o futuro?
A coisa principal é que se é preciso introduzir mudanças, há que fazê-las – é para isso que se está naquela posição. Resisto à ideia de gerir apenas o que já existe e de aguentar. Não – se é preciso mudar, muda-se. Acho que, nos sítios por onde andei, foi isso que tentei fazer, e é isso que tento fazer também aqui. As pessoas a quem é concedido o privilégio de decidir, têm de decidir em função daquilo que acham que são os interesses em jogo, aquilo que é mesmo preciso fazer, e não daquilo que é mais cómodo ou que nos preserva o futuro.
E nós, portugueses, às vezes acomodamo-nos. Temos condições para fazer muito mais, mas estamos à espera de que os outros façam. Depois de a mudança acontecer, todos reconhecemos o seu valor.
Sim, às vezes há coisas que se fazem com muita dificuldade e que logo a seguir são dadas como adquiridas – e já ninguém acha que deveriam ser de outra maneira. Mas somos demasiado acomodados, sim.
Estamos na Fundação Champalimaud, que preside há 18 anos…
Sabe que nunca tinha pensado que eram tantos… Agora, quando ouço “18 anos”… De facto, já é bastante tempo. Desde a altura em que o nosso fundador, António Champalimaud, morreu [a 8 de maio de 2004] e em que o seu testamento foi conhecido. Era no testamento que a Fundação era criada.
Consta que só esteve com ele uma vez na vida. Como foi esse encontro?
Sim, só o vi uma vez. Eu era presidente do Conselho Fiscal do Banco Totta & Açores, na altura em que António Champalimaud adquiriu o controlo do banco, e quis que eu continuasse com essa posição. Um dia ofereceu um almoço, em casa, às pessoas que estavam nos órgãos do banco, e foi a única vez que o vi. Depois disso, tive vários contactos por telefone, primeiro relacionados com o banco, e o último de todos foi aquele em que me perguntou se queria presidir a uma fundação que ele ia criar.
O que é que sentiu?
Que a minha vida mudou toda em dois segundos. Eu tinha saído do Ministério da Saúde uns anos antes e tinha prometido a mim própria que hospitais e médicos seriam questões que reservaria para a minha vida privada, quando precisasse deles. Tinha recusado várias outras ofertas nessa área. Até ao dia em que ele me falou e me disse: “Vou criar uma fundação dedicada à ciência e à saúde. A senhora aceitaria ser presidente?” De repente, percebi que médicos e cientistas podiam voltar à minha vida… Era um convite absolutamente irrecusável. Era impensável que alguém a quem é proposta uma coisa destas tão extraordinária se pusesse com coisas. Portanto, eu respondi: “Com certeza, é uma grande honra, fará o favor de me dar as instruções que achar convenientes.” Não me deu instruções nenhumas. Uns anos depois, o testamento continha todas as instruções que ele quis dar: é “uma fundação para apoiar a pesquisa científica na área da medicina”. É aquilo que diz exatamente o testamento, o que é muito amplo, permite muita escolha.
“Aquilo que me preocupa é, a certa altura, deixarmos as coisas estarem como estão e não fazermos muitas ondas. Não, é preciso fazer ondas, porque senão a realidade toma conta.”
Daí o Center for the Unknown (Centro para o Desconhecido)?
Este local em que estamos chama-se assim, Champalimaud Center for the Unknown. “Unknown” tem que ver com sermos uma entidade científica, sendo que a ciência existe para descobrir aquilo que não se sabe. E estamos no sítio de onde os nossos antepassados partiam para o desconhecido [a sede da Fundação Champalimaud situa-se a dois passos da Torre de Belém]. Portanto, é uma certa emulação da coragem dos nossos antepassados, imaginando que é precisa a mesma coragem para nos atirarmos a coisas que são difíceis. Por exemplo, quando agora escolhemos fazer investigação na área do cancro do pâncreas, podendo escolher outra coisa qualquer. Mas o cancro do pâncreas é aquele que neste momento aflige mais, sobre o qual se sabe menos, aquele em relação ao qual as pessoas sabem que um diagnóstico é uma ameaça sobre a vida. Portanto, achámos que era por aí que devíamos ir. É essa necessidade de se pensar não naquilo que é mais fácil, mas naquilo que é mais preciso pensar.
Há 18 anos podia imaginar o que está aqui hoje?
Não, não fazia a mais pequena ideia. Na altura, foi atirarmo-nos ao trabalho.
Acha que António Champalimaud estaria orgulhoso do que existe?
Acho que sim. Espero que ache que temos vindo a fazer aquilo que ele poderia ter sonhado. Dá-me muito prazer ter uma representação dele aqui, numa coluna, porque tenho a sensação de que está a ver se a gente faz as coisas…
Isso continua a motivá-la?
Em toda a nossa atividade, se há referência que a gente toma como permanente, é o que é que ele teria querido que nós fizéssemos. É assim por razões de princípio. Também a lei diz que as fundações devem fazer aquilo que os fundadores entendem que deve ser feito. Para nós é uma referência muito importante e permanente.
O que acha que a fundação traz de diferente para a saúde e para a ciência?
Somos uma entidade que faz investigação, que é aquilo para que existimos. Quando António Champalimaud disse “na área da saúde”, o que lemos é “investigação que possa traduzir-se em melhor prevenção e tratamento de doenças”. A investigação que se pode refletir na forma como se trata precisa da colaboração dos médicos e dos doentes. O que é especial na nossa fundação é que a ciência e a medicina convivem, trabalham em conjunto. Os cientistas tentam responder a perguntas que ainda não têm respostas, e os médicos sabem formular as perguntas, porque olham para os doentes e percebem quais são os problemas que têm. Os médicos precisam de ter ao seu lado pessoas a quem possam encomendar as respostas e os cientistas precisam de saber quais são as perguntas essenciais. A ciência que nós fazemos é mais do que isto: também fazemos ciência fundamental, aquela que não é suscitada pela necessidade de responder imediatamente a problemas, aquela que procura o conhecimento, aquilo que a gente ainda não sabe. Há um equilíbrio entre essa ciência fundamental e a ciência que é feita através de uma proximidade com a vida, com os problemas da saúde. Aqui no centro, há uma janela a que o nosso arquiteto chamava a “janela da esperança” – uma janela que tem por detrás cientistas e laboratórios, mas que está na frente da porta principal. Os cientistas e os doentes podem olhar-se e o doente que entra sabe que aqui há ciência: estamos aqui para o tratar, mas também para encontrar melhores maneiras de o tratar. Os cientistas têm muita pressa, porque o doente não pode ficar eternamente à espera de que a gente saiba como é que abordamos melhor as questões. Aquela janela é o símbolo do que somos.
Isso gera empatia?
Espero que sim. Os doentes são um elemento essencial do que fazemos aqui, além dos profissionais de saúde e dos cientistas das mais variadas áreas…
E internacionais, não é?
Sim, aqui dentro temos mais de mil pessoas e, na área da ciência, cerca de um terço são estrangeiros. Nós recrutamos em função da qualidade da ciência que eles fazem e da adequação à ciência que nós aqui queremos fazer. Temos muito orgulho de ter gente de tantos sítios. Aliás, a entrada tem as bandeiras de toda a gente que trabalha aqui dentro. Temos muito orgulho em existir para o mundo. Existimos para os portugueses, que são certamente a quem António Champalimaud deixou a fundação, e depois para o mundo em geral, porque a ciência não tem bar-reiras – ou não deve ter.
Tem alguma vontade de voltar a ocupar cargos públicos?
Os mais novos que tomem conta disso! Em todo o caso, sou membro do Conselho de Estado, portanto, mantenho alguma ligação.
O presidente Marcelo Rebelo de Sousa referiu-se a si, em 2021, como “um vulcão contido, que só não foi mais longe em todas as vertentes da sua vida porque chegou quase sempre antes do tempo numa sociedade que prefere esperar para ver antes de viver”.
Não sei o que é que ele quer dizer com isso do vulcão, mas pronto… [risos]
“Vulcão contido”, acho que percebo. Tem uma serenidade exterior aparente, mas é alguém que faz acontecer, que transforma a sociedade.
Obrigada. Essa velocidade interior eu sinto-a e, se tenho alguma circunstância em que possa exercê-la, tudo bem. Mas vivo muito serena e convencida dos privilégios que fui tendo ao longo da vida. Isto é um privilégio enorme, estar aqui e ter esta possibilidade. Portanto, vivo completamente serena em relação ao resto. Tenho muita honra em ser conselheira de Estado, faço-o o melhor que posso, mas não me passa pela cabeça ir para cargos nenhuns. Acho que é preciso que os mais novos vão tomando conta disso – homens e mulheres.
Ouvi dizer que não é uma pessoa competitiva, mas talvez seja algo competitiva consigo própria. Acha que o que foi conquistando foi resultado disso?
Nunca pensei nesses termos. Obrigada. Percebo perfeitamente o lado positivo da competição, e percebo que se diga de mim que não sinto essa necessidade permanente, o que é um bocado complicado quando se está na política. Mas agradeço-lhe muito esses termos. O que me entusiasma não é tanto uma competição exterior, mas aquilo que pode ser feito, incluindo as mudanças, no sítio onde estou. É isso que me parece importante. Não fiz esforço nenhum para vir para aqui, para isto me ter acontecido – tenho a minha interpretação sobre porque é que as coisas aconteceram, mas nunca me tinha passado pela cabeça que pudessem acontecer. Agora, uma vez aqui, tenho a obrigação de fazer render – em benefício das pessoas em geral – tudo aquilo que me foi confiado. Tenho uma equipa absolutamente fabulosa, que trabalha comigo na Fundação, e portanto o que está aqui é o resultado do trabalho dessa equipa toda. Tenho muita sorte. O que acho é que não posso estar aqui sossegadinha à espera de que as coisas aconteçam – tenho a obrigação de fazer com que elas aconteçam. A palavra competição não me enerva muito, nem me excita muito. Admito que eu própria não tenha muito esse sentido, e que na política é difícil andar muito para a frente sem o ter.
“A palavra competição não me enerva muito, nem me excita muito. Admito que eu própria não tenha muito esse sentido, e que na política é difícil andar muito para a frente sem o ter.”
Leonor Beleza , presidente da Fundacao Champalimaud , entrevistada pela Rita Nabeiro para a revista DDD da Delta . Lisboa , 01 de Julho de 2022 . ©Enric Vives-Rubio
Que aprendizagens retira destes últimos anos e quais acha que podiam ser aplicadas na sociedade?
Há um fator que me preocupa muito. Quando foi o 25 de Abril, os jovens da minha idade entusiasmaram-se e muitos de nós filiámo-nos em partidos e começámos a participar na vida pública. Hoje, esse impulso não existe, ou não existe de todo ao mesmo nível. Isso é muito preocupante. Não acho que as pessoas que fazem política tenham de ser profissionais da política ou tenham de passar a viver na política, mas acho absolutamente essencial que alguns dos melhores queiram fazer política. E parece-me perfeitamente possível fazê-lo no contexto de uma vida profissional noutras áreas: passar uns tempos a prestar um serviço a todos, que é o que é a política. Acho que se houver mais gente nova a fazer as coisas, a resistência à mudança não é a mesma. Aquilo que me preocupa é, a certa altura, deixarmos as coisas estarem como estão e não fazermos muitas ondas. Não, é preciso fazer ondas, porque senão a realidade toma conta. Isto devia ser suscitado por mais gente nova, interessada naquilo que se passa, que tenha uma vida profissional de sucesso, que saiba fazer coisas nos mais variados níveis, e que ache que pode e deve dedicar parte importante do seu tempo, pelo menos durante algum tempo, ao serviço das necessidades coletivas.
Há uma frase da Maya Angelou, poetisa norte–americana, que diz: “Se vais viver, deixa um legado, deixa uma marca no mundo que não possa ser apagada.” Que legado gostaria de deixar?
Não penso muito em termos de legado, penso em termos de corresponder ao que estou em condições de fazer nas várias circunstâncias da minha vida. Por sorte e privilégio meu, fui levada a fazer coisas que constituirão coisas importantes para aqueles que venham. Há uma grande dose de privilégio no facto de ter sido colocada nessa situação. Não penso muito no meu legado, confesso, mas acho que cada um de nós tem a obrigação de deixar uma marca positiva. Onde me parece que é mais evidente que o fiz é aqui. É a Fundação ficar tão forte e tão ao serviço das pessoas quanto possível.