António Cachola, 67 anos, é o homem que dá nome e forma à coleção do Museu de Arte Contemporânea de Elvas (MACE). Foi, também, o grande impulsionador deste projeto museológico, inaugurado em 2007 num edifício emblemático da sua cidade natal: o antigo Hospital da Misericórdia.
“Enquanto colecionador só fiz uma exigência para fazer o depósito da minha coleção no município de Elvas: o museu tinha de ser no edifício da Misericórdia, onde, durante muitos anos, funcionou o hospital da cidade. Conhecia bem o edifício, cheguei a estar cá hospitalizado. Não fiz outra exigência. A autarquia concordou, fez a aquisição do edifício e o projeto de aquisição e remodelação foi financiado pela Comunidade Europeia em 75%.”
Recebe-nos de sorriso aberto no Dia Internacional dos Museus, 18 de maio, à entrada do edifício reconvertido para estas funções. Um projeto de arquitetura que teve por objetivo retirar as camadas acrescentadas ao longo de séculos pelas diferentes instituições que albergara.
“Estamos em presença de um edifício do século XVI, que tem obras muito significativas no século XVIII, passa a hospital, com muitas obras de adaptação. O arquiteto Pedro Reis ganhou o concurso internacional para a criação do Museu de Arte Contemporânea de Elvas, com uma equipa multidisciplinar – o Filipe Alarcão como designer e o Henrique Cayatte na parte da comunicação – e com um conceito de trabalho muito interessante: retirar tudo aquilo que indevidamente foi colocado ao longo do tempo no edifício e trazê-lo à sua origem da forma mais fidedigna possível.”
António Cachola
O gosto de António Cachola pela arte contemporânea surge ainda nos anos 80. Curiosamente, deve-se, ainda que indiretamente, ao seu percurso na Delta, onde foi diretor financeiro e onde ainda hoje, já reformado, desempenha um precioso e indispensável papel de administrador não executivo. Uma ligação inquebrável, que o pin com o logótipo da empresa, na lapela, torna evidente. Afinal, foi em Campo Maior que teve o primeiro contacto com uma série de artistas portugueses.
“Já eu estava na Delta – entrei em fevereiro de 1981 –, aconteceram em Campo Maior três edições dos Encontros Ibéricos de Arte Moderna, nos quais participaram grande parte dos artistas portugueses relevantes na altura: Ana Vidigal, Julião Sarmento, Fernanda Fragateiro, Pedro Calapez, José Pedro Croft, Pedro Proença, entre muito outros. O que é fato é que fiquei muito influenciado por esses encontros.”
António Cachola começa a sua coleção na sequência desses contactos. E baliza-a, desde cedo, por barreiras cronológicas: artistas portugueses que começam a expor pública e regularmente de 1980 em diante. Uma escolha muito paradigmática no que à arte contemporânea diz respeito, porque foi precisamente nesses anos que, depois de uma efetiva desertificação de espaços expositivos no país, começam a surgir vários projetos museológicos em Portugal.
“A primeira peça que adquiri foi uma obra do artista minimalista Fernando Calhau, que infelizmente faleceu. Ele foi um dos precursores do minimalismo em Portugal e serviu de lançamento para a obra de muitos artistas no nosso país.”
A proximidade com Badajoz, onde em 1995 abre o Museu Estremenho Ibero-Americano de Arte Contemporânea (MEIAC), contribuiu para estimular ainda mais o seu gosto pela arte e reforçar-lhe a convicção de que Elvas era o sítio certo para expor as obras que ia colecionando.
“Habituei-me a ver do outro lado da fronteira, em Badajoz, movimentos de arte contemporânea. Foi lá que surgiu, em 1995, o MEIAC, um museu importante, e achei que existia um certo desequilíbrio transfronteiriço no que dizia respeito à oferta cultural e artística no domínio da arte contemporânea. Pensei que havia uma possibilidade de minimizar este desiquilíbrio, na medida em que eu tinha uma coleção de arte contemporânea e Elvas é uma cidade muito interessante do ponto de vista arquitetónico e nesse sentido poderia ser o local certo para receber um novo Museu de Arte Contemporânea. Felizmente, tudo isso aconteceu e hoje estas duas cidades estão mais ricas e mais equilibradas no que à oferta cultural e artística diz respeito.”
Enquanto visitamos as diversas salas do museu, António Cachola fala apaixonadamente sobre as peças expostas, os autores, o que pesa na aquisição, sobre como se relacionam as diferentes obras entre si e com o espaço que as acolhe. Se o economista, ex-diretor financeiro da Delta, é um homem que domina os números e a vertente racional do negócio, o colecionador de arte é um homem que olha para as obras como se fossem pessoas, que repara nos seus pequenos traços e que se relaciona com elas de uma forma emocional. Mas as duas facetas, curiosamente, não se anulam. Completam-se.
“Esta é uma coleção particular que deu origem a um museu e que por isso tem muitas características de uma coleção pública. A política de aquisições, que é feita com responsabilidade última do colecionador, tem sempre associada uma série de variáveis que suportam a respetiva compra, nomeadamente conversa com os artistas, curadores, diretores de museus, etc. É evidente que o gosto pessoal está sempre lá, mas é importante pensar no museu, no seu público e também pensar nas peças que já existem na coleção, porque elas determinam as que vêm a seguir. As obras de arte, se quisermos exagerar um bocadinho – ou não – são como as pessoas. Ou seja, elas quando estão ao lado umas das outras procuram boa companhia e tentam falar entre si. Portanto, há obras que pelo fato de já integrarem o acervo da coleção , estão a pedir que outras obras com determinadas caraterísticas venham para estar ao pé delas, para lhe fazerem boa companhia.”
E que obras são essas? Para começar, são muitas: o acervo da coleção António Cachola soma cerca de 850 peças, de todos os nomes relevantes da arte contemporânea portuguesa. É, aliás, uma coleção singular nesse sentido: todos os artistas são portugueses, independentemente de residirem ou não no país. A singularidade da coleção faz com que muitas das suas peças sejam constantemente requisitadas para ser expostas noutros museus, um pouco por todo o mundo. E a sua riqueza torna importantíssimo o trabalho de curadoria, para construir exposições coerentes. Pedimos, nesse sentido, a António Cachola que falasse sobre algumas das obras expostas.
Carlos Nogueira, 1947. Janela grande virada a norte. Fragmento. 1990-2018
“O artista começa em 1990 a pensar na forma como vai organizar uma nova peça que quer criar e só em 2018 considera que a mesma está terminada. E é aí que a traz à luz do dia. Isto, no contexto da coleção, é muito interessante: estamos a falar de 1990 a 2018, quase 30 anos. Porque é que eu achei que esta peça era interessantíssima para a coleção? Porque ela é, do ponto de vista plástico e do ponto de vista visual, uma peça com muita qualidade para a arte contemporânea, mas acima de tudo por causa da forma como está datada. Ou seja, quando vi esta escultura fiz imediatamente um paralelismo entre os anos que o artista levou a trazer a peça à luz do dia e os anos que eu enquanto colecionador levei a fazer a coleção. A coleção começou a ser feita praticamente há 30 anos; portanto, há aqui um paralelismo muito interessante entre a “vida” da coleção e o tempo de criação que o artista dedicou a este trabalho.”
Augusto Alves da Silva, 1963. Sem Título. Série Ferrari. 1999
“Para mim é mesmo muito difícil fazer destaque de obras, normalmente as obras que nós colecionadores mais gostamos são aquelas que ainda não temos, mas devo dizer que o artista que é responsável por estas fotografias, Augusto Alves da Silva, é um extraordinário artista fotografo, muito importante e reconhecido a nível nacional e internacional. Nesta obra estamos a falar de um stand da Ferrari e de um sem-abrigo. É uma fotografia icónica, tirada no Porto. No piso superior, temos a possibilidade de ver um conjunto de fotografias que integram uma serie completa deste mesmo artista, cujo titulo é ‘As Paisagens Inúteis”. É um dos artistas mais representados na coleção.”
Mané Pacheco, 1978. Período Azul. 2018
“A imagem do vídeo que aqui vemos é de uma excelente artista feminista, a Mané Pacheco. O titulo está relacionado com a obra de Pablo Picasso. O vídeo é projetado num ecrã em areia que está no chão. Na imagem projetada estão a ser feitos objetos com formas que nos recordam a obra de Jeff Koons. Na parte restante do vídeo a artista percorre e apresenta um pouco da arte contemporânea feita por vários artistas.”
Carla Filipe, 1973. Ordem de Assalto. 2012-2020
“Aqui temos uma instalação fantástica. É uma peça que se chama Ordem de Assalto e que tem todos estes bens alimentares. É da Carla Filipe, uma artista que reside no Porto e que já representou Portugal na Bienal de Istambul. A qualidade do seu trabalho tem-lhe conferido uma excelente presença internacional. Podemos e devemos circular no meio dos vários elementos que compõem esta peça. São alimentos reais, tendo este trabalho, em concreto, a ver com situações de grande pobreza, de grandes dificuldades para muitas famílias, no início do século passado. Havia, na altura, uma possibilidade de, em determinados momentos, as pessoas poderem ir a certos sítios recolher, com autorização, alimentos. Então, a Carla Filipe teve essa ideia baseada nessa situação real e fez esta obra, que é datada do tempo do governo de Passos Coelho, quando houve grandes dificuldades no país; logo, há aqui um cariz político muito forte, como aliás a artista deixa quase sempre transparecer no seu trabalho.”
Joana Vasconcelos, 1971. A Noiva. 2002-2005
“Esta é uma das obras mais reconhecidas da coleção. Adquiri-a em 2002, sendo que a primeira peça que comprei à Joana Vasconcelos foi em 1998, a ‘Cama Valium’, uma escultura feita de comprimidos Valium. Esta peça, que é de 2002, foi preparada para ser apresentada na Bienal de Veneza em 2005, daí a datação dela ser 2002-2005. Também é interessante podermos circular à sua volta. Quando está no museu está sempre nesta sala. É a peça mais pedida da coleção, circula pelo mundo inteiro, por todos os sítios possíveis e imaginários e está muito tempo fora. Em breve vai para a Fundação Calouste Gulbenkian, integrará uma exposição com artistas mulheres e vai lá estar [até 23 de agosto]. É uma das peças icónicas da arte contemporânea em Portugal: quando esteve na Bienal de Veneza, em 2005, foi capa do New York Times.”
Luís Campos, 1955. Limbo. 2004
“O museu tem uma extensão que é o Paiol de Nossa Senhora da Conceição. E é lá que vamos apresentar uma obra para assinalar o Dia Internacional dos Museus. “Limbo” é o titulo da obra e escolhemo-la não por acaso, tendo em conta o contexto pandémico que vivemos. Trata-se da projeção de um vídeo feito a partir de fotografias de corpos nus. Este artista é médico, especialista em Medicina Interna. Achamos que nesta altura de pandemia, devemos também fazer uma homenagem aos profissionais de saúde. Mas, claro, não é só por ser médico que foi escolhido, mas acima de tudo porque ele é um excelente artista e integra a coleção desde 1999.”