Com o vinho de talha a ganhar importância comercial, António Rocha é, atualmente, o único homem a fabricar estes gigantes.

António Rocha gosta tanto de coisas antigas como de coisas que não sabe fazer. Um amigo andava a esvaziar uma casa velha e preparava-se para deitar fora uns potes de barro. “Não jogues isso fora, que gosto de ver coisas antigas”, disse-lhe. No dia seguinte tinha à entrada do seu telheiro uma ânfora de uns 50 centímetros de altura. “Então eu não sou capaz de fazer um pote?”, desafiou-se. De tanto olhar para o pote fez um igual, depois outro maior e outro ainda – os últimos com mais de dois metros de altura. É, atualmente, o único artesão a fazer talhas, ânforas para mais de mil litros, procuradas agora que a produção de vinho de talha está a renascer, sobretudo no Alentejo.

O artesão destes gigantes de barro só começou a mexer na argila já depois dos 50 anos. Foi pedreiro desde a adolescência. Começou por trabalhar na construção civil e assim que apareceram os primeiros alvarás na Vidigueira, onde nasceu, ficou por conta própria – foi assim durante 16 anos, até chegar a crise e lhe acabar com essa vida. Nessa altura, puxou a fita atrás e lembrou-se do como era a sua zona durante a infância.

“Aqui na Vidigueira havia muitos telheiros. Desde miúdo, olhava para o tijolo burro e ficava deslumbrado: no chão, todos alinhadinhos, vermelhinhos, acabados de cozer, pareciam barras de ouro”, conta no seu próprio telheiro, agora com 59 anos, rodeado de milhares de ladrilhos e ânforas de todos os tamanhos e feitios.

António conhecia as proporções de tijolos e ladrilhos e sabia de vista como eram os fornos em que se coziam; tinha visto os homens a “amassar o barro ao pé descalço” e sabia que era junto a esses telheiros antigos que estava o barro. Isto chegou para o início: fez uma forma de madeira e metal, preparou um barro denso, pôs as primeiras peças numa grelha; foi procurar umas estevas e ateou-lhes o fogo dentro de um bidon pensando “isto há de dar alguma coisa”. Deu tanto que ficou tudo preto, logo com António que fazia tanto gosto em ver os tijolos quase incandescentes. “Só houve uma coisa que me deixou deslumbrado: ali mesmo ao pé do lume eles estavam vermelhinhos – ‘eh pá, é mesmo isto que eu quero’. Andei um ano e meio a testar isso”, recorda.

Em 2017, ano em que abriu esta sua nova empresa, já estava seguro na arte do lambaz (o tijolo burro) e dos ladrilhos. Foi aí que lhe apareceu o tal pote à porta do casão, como chama ao armazém, olaria, telheiro e complexo de três fornos perto da Vidigueira, onde passa os dias sozinho a experimentar, a errar consecutivamente e assim a construir uma espécie de livro de estilo da sua nova profissão. Olhou para o pote, tirou-lhe um molde e correu-lhe bem a tentativa de fazer um parecido. Vai daí, começou a fazer ânforas cada vez maiores até superar a marca dos dois metros de altura – o tamanho daquelas em que se faz vinho nas adegas da zona. Aumentou a escala pela simples razão de o desafio ser maior. “Quanto maiores, melhor. Começar a fazer uma coisa destas e ela estar ali como está é um fenómeno. Ninguém faz.”

Deu-se a coincidência de ter sido uma boa altura para agarrar um desafio destes. A tradição do vinho de talha estava mais ou menos adormecida até há uns anos – apenas algumas adegas da região continuavam a fazê-lo para ser servido em tabernas locais ou para consumo caseiro. Tempos houve em que a pequena Vila Alva, a dez minutos de carro deste telheiro, contava 72 adegas. Ao contrário do restante Alentejo, esta vila era sítio de minifúndio: cada família tinha o seu pedaço de vinha e uma adega onde fazia vinho. Podia ser em grandes quantidades ou apenas para consumo familiar, mas todos tinham o seu tareco – as vasilhas mais pequenas que produziam poucas dezenas de litros. Hoje, em Vila Alva, apenas uma mão-cheia de adegas continua a produzir vinho e a Junta de Freguesia tenta reavivar a tradição institucionalizando a festa de abertura das talhas, em novembro.

O abandono desta produção tradicional aconteceu também em adegas de maior escala por todo o Alentejo, e a produção de vinho em cooperativas por volta dos anos 50 teve o seu papel nesse fenómeno. As talhas ficaram vazias dentro dessas adegas fechadas ou foram levadas para casas, jardins e espaços públicos, apenas como memória decorativa de outro tempo.

Se a tradição do vinho de talha estava dormente, o fabrico das talhas de barro estava morto. As velhas adegas de Vila de Frades e Vila Alva ainda conservam talhas de barro do século XIX e início do século XX. Depois disso, não há nada. E por várias razões. Para começar, os anos 30 trouxeram a era do cimento, que começou a dar forma às vasilhas utilizadas, contribuindo para instalar o desinteresse pelo outro material, tão mais sensível e difícil de trabalhar. Depois, a desertificação e a produção em série acabaram com uma série de olarias e telheiros no interior do Alentejo. Os resistentes não viam razão para continuar a fabricar as trabalhosas e monstruosas ânforas que já poucos usavam para vinificar.

Em Beringel, terra de oleiros, hoje conta-se apenas um: António Mestre conhece o barro desde miúdo porque era esse o ofício da família. Continua a fazer ânforas de cerca de 1,40 metros, a maioria, no entanto, meramente decorativas. Campo Maior, Cuba, Reguengos de Monsaraz ou São Pedro do Corval, alguns dos centros de produção de talhas do interior do Alentejo – cada um com um desenho de talha diferente, uma assinatura da vila e do oleiro – mostram o mesmo fenómeno. Quem alguma vez fez talhas em barro ou já morreu ou é demasiado velho para saber contar como se fazia, diz António Rocha, que ainda pensou conversar com um desses trabalhadores, hoje com 90 anos, de São Pedro do Corval.

Vila Alva já teve mais de 70 adegas, onde se fazia vinho em talhas. Hoje tem uma mão-cheia delas em atividade. entre eles, está a Adega do Mestre Daniel: nos últimos anos começou a engarrafar o seu vinho de talha, o XXVI Talhas.

O vinho de talha reanimou-se graças, primeiro, a alguns produtores estrangeiros, fascinados por técnicas de vinificação pouco interventivas, e, a pouco e pouco, por pequenos produtores portugueses que foram passando o testemunho às grandes casas, também hoje rendidas à introdução das vasilhas de barro em algum momento da vinificação ou do estágio do vinho. 

A técnica vem do tempo do Império Romano – não é, portanto, exclusiva do Alentejo. Mas foi no Alentejo que sobreviveu, ressurgiu e é por isso que a Câmara da Vidigueira encabeça uma candidatura do vinho de talha alentejano a Património da Humanidade, da UNESCO. 

Ora, a única forma de produzir vinho em talhas de barro hoje é comprando as talhas que as antigas adegas ainda guardam. Mas pela antiguidade e pela natureza do material, essas talhas antigas partem-se facilmente no transporte. As novas também são um problema: o único que está a fazê-las é António, e ainda está a apalpar terreno, sem que ninguém lhe diga como se faz. Nem ele quer. “Havia aí homens com 80 e tal anos que tinham trabalhado em telheiros, mas eu não queria perguntar-lhes nada disso, depois ainda me chamavam parvo.”

No seu telheiro há uma talha de mais de dois metros que ele mesmo fez e cozeu. Quando se tenta falar sobre ela, António atira logo que não fez a pesgada, como que a tentar conter alguém que possa ter-se entusiasmado. O aviso é importante: é uma das diferenças entre uma talha que serve para fazer vinho e outra que serve apenas para fogo de vista. A pesga, daí a expressão pesgada, é a mistura de óleos naturais (normalmente com bastante resina de pinheiro) que cobre a parede interior, para impermeabilizar o barro – antigamente, aplicava-se aquecendo-o com tochas e rolando a talha no chão. Trabalho para uns quantos homens de uma vez.

“Eu acredito que no tempo em que se faziam essas talhas [quem as fazia] eram grandes capitalistas que tinham 10 e 20 empregados. Porque isto custa muito dinheiro. Não tenho horas para vir para aqui e vou-me embora depois da meia-noite”, compara António, que é um one man show dos telheiros, sem companhia para moldar uma talha maior do que ele próprio, quanto mais para a pesgada. E as noitadas de volta do forno explicam-se facilmente: o barro tem de cozer durante a noite para que se note que brilha e está pronto.

O trabalho no seu telheiro, na Vidigueira, é solitário: só António e os três pequenos cães que lhe fazem companhia até de madrugada, nas noites em que tem de cozer peças no forno.

A talha ao fundo do casão é uma espécie de modelo inspirador a partir do qual vai fazer quatro outras, encomendadas pela Câmara da Vidigueira para um Centro Interpretativo do Vinho de Talha, a inaugurar em Vila de Frades. Vão custar 1500 euros cada uma. “E note que são 20 ou 25 dias, foi muito trabalho, que para fazer estas tive de testar muitas”, assegura António. Nenhuma delas vai servir para fazer vinho, porque “estas, deste tamanho, ainda são como de teste, são para ganhar segurança”.

Cá fora, uma roda de bicicleta com um tampo em cima e um guiador ajuda-o a movimentar mesas de trabalho sem precisar de ninguém. Por todo o lado, há máquinas que criou para lhe atalharem trabalho, mas que não pensa batizar. No interior da oficina, tem uma roda de oleiro reinventada: encaixou um eixo na ventoinha de uma antiga máquina agrícola e pôs-lhe uma placa – como uma mesa – por cima. Este instrumento fica rente ao chão e é a partir dessa base que vão crescendo talhas de grande porte. “A minha ideia era, em vez de eu rodar à volta dela, ser ela a rodar”, explica sentado à beira do prato, enquanto os seus três cães minúsculos correm por todo o lado à procura de atenção.

Ali em cima põe um círculo de barro – “do mais puro, melhor para as talhas” – com o diâmetro do fundo. O resto faz-se “às camadinhas”, aplicando anéis de barro uns por cima dos outros, para fazer aumentar ou diminuir o volume da talha, explica António depois de alguma insistência, frisando que esta é a sua maneira, desconhece como se faziam os outros.

Para ver a talha crescer, tem de esperar que o barro da base vá secando e ganhe solidez para sustentar o que vem a seguir – passam-se assim vários dias. O perfil da obra acerta-se com mais um instrumento da sua autoria. Tirou o modelo a umas talhas antigas e soldou um molde em metal que aplica à sua roda de oleiro para ir acertando o exterior da peça. O mais complicado agora é a cozedura: para já, vê pela cor do barro. No pátio, uma das poucas peças que tem assinada com “A. Rocha” ainda precisa de mais forno, não tem o vermelho certo. “Vou tentar arranjar um termómetro para ser uma coisa mesmo certinha. Se isso falha um bocadinho, é um risco muito grande. São coisas que eu tenho de afinar, estar concentrado. Foi uma emoção fazer a primeira talha grande. Eu vou muito nessas emoções e tenho de ter mais calma.”

Quem chega ao forno onde coze as peças percebe o que António quer dizer com “ir nas emoções” e precisar de calma. Não é um forno só, antes um complexo de três fornos com uma construção em arcadas que os interliga. O primeiro forno era só para lambazes, ainda a sua paixão por tijolos não tinha sido substituída pela das talhas. Cozeu de uma vez os que lá pôs dentro e os que faziam as paredes do próprio forno. Construiu um espaço maior para as talhas médias, e pouco depois veio o grande empreendimento para as de dois metros, que têm de ser lá depositadas com uma máquina com garfos.

A grande arcada dos fornos é uma espécie de caverna para pensadores: passa ali pelo menos umas seis horas à noite a controlar a cozedura das peças. Quando consegue ver a incandescência do tijolos, pode apagar tudo, meter-se na carrinha com os três cachorros e voltar para casa, a 10 minutos de distância. De volta ao casão, é sempre seguido por esses três cães, iguais. Dão sinal quando, à noite, alguém aparece na estrada. Nunca param quietos, mas também nunca caíram a nenhum dos fornos, felizmente. “Eu também já fiz vinho além.” Inicialmente, a confissão não parecia chocante, mas António aponta para um bidão de plástico azul, sem vergonhas. “O sabor é outra coisa. Mas pronto, dá para fazer.”