Quando foi inaugurada, em 2011, a Casa-Museu José Saramago, em Lanzarote, servia café aos seus visitantes, tal como fazia o Nobel português, sempre que recebia alguém em casa. Com a pandemia, o ritual perdeu-se, mas, no final de 2023, a máquina Delta voltou a trabalhar.

Quando a Casa José Saramago, na ilha espanhola de Lanzarote, foi inaugurada, em Portugal escrevia-se que este lugar era “uma casa-museu vivida com cheiro a café português”. Durante a visita, parava-se na cozinha e bebia-se um café Delta – evocavam-se os momentos em que Saramago, à volta de uma chávena, conversou ali mesmo com escritores que o visitavam, artistas plásticos, fotógrafos, ou mesmo com fãs que tinham chegado ali atraídos pela esperança de um autógrafo. Só a pandemia, quase dez anos depois da inauguração em 2011, acabou com o ritual. Mas no final de 2023, os cafés Delta voltaram a acompanhar as conversas dos visitantes.

“Cheirava sempre a café nesta cozinha”, recorda María del Río, cunhada de José Saramago, vizinha e diretora da casa-museu desde o final de 2023. Esta memória de María leva-a a 1993, quando Pilar del Río e José Saramago se mudaram para esta casa em Tías, Lanzarote. O casal decidiu mudar-se depois de um famoso episódio em que um político se tornou crítico de literatura. Em 1992, Sousa Lara, o subsecretário da Cultura do governo de Cavaco Silva, vetou O Evangelho Segundo Jesus Cristo para o Prémio Literário Europeu. O argumento era que a obra, além de não representar os portugueses, estava mal escrita. Bastou para Saramago se mudar para a ilha vulcânica onde vivia a irmã de Pilar e o marido, ilha que o português tinha conhecido apenas uns meses antes.

As casas dos dois casais – José e Pilar, María e Javier Pérez-Figares – eram geminadas, pensadas por Javier, arquiteto. “Quando Saramago ainda era vivo, muitas vezes chegavam aqui leitores com um livro, queriam um autógrafo. Tocavam à campainha, mas tinha havido um problema com o vídeo–porteiro durante a construção da casa: não funcionava. As pessoas ficavam sempre surpreendidas quando Saramago lhes abria diretamente a porta. Convidava-as sempre a entrar, queria saber de onde eram, e acabavam por tomar um café na cozinha”, conta María. 

Como em qualquer habitação ibérica modesta, a cozinha é o núcleo desta casa. Não há sala de jantar e, como é a comer que as conversas melhor fluem, foram recebidos na cozinha escritores como Susan Sontag ou Eduardo Galeano, realizadores como Pedro Almodóvar e Bernardo Bertolucci, fotógrafos como Sebastião Salgado, políticos como Mário Soares. O ritual era servir um café, se era dia, ou, se calhava ao jantar, bacalhau com todos, uma das refeições favoritas de Saramago. “Dizia-se que havia dois tipos de visitantes de Lanzarote: os que tinham comido o bacalhau com todos e os que não tinham”, ri-se a diretora da Casa José Saramago.

A cozinha está como a deixou Saramago. O hall de entrada da casa, o escritório e a sala ganharam uns pequenos números em papel, como legendas de obras de arte. São os números que devem ser digitados no audio-guia durante a visita para que se ouçam os textos de Pilar del Río sobre a vida do Nobel português nesta casa, sobre a sua coleção de elefantes e cavalos oferecidos por pessoas de todo o mundo, as suas representações de Cristo na cruz. Todas as visitas são acompanhadas de uma guia que vai completando os textos gravados, respondendo a curiosidades. É ao entrar na cozinha que se sai da casa-museu para se invadir um ambiente quotidiano.

No frigorífico, há fotografias – dos sobrinhos, no dia em que o fotógrafo ia à escola, de Pilar ou de Saramago sentado na sua pedra no jardim com vista para os limites da ilha. Conhecemos melhor o amor pelos cães: Camões, que lhes apareceu em casa enquanto Saramago descobria pelo telefone que tinha recebido o prémio Camões, e Pepe, diminutivo espanhol para José – uma forma de Saramago virar a cara para o cão sempre que os espanhóis lhe chamavam Pepe, nos primeiros anos na ilha. Pelas bancadas da cozinha estão as loiças de todos os dias com que Saramago tomava o seu banquete de pequeno-almoço. A um canto, à saída para o jardim, está a máquina Delta que, em 2011, iniciou a parceria entre a empresa portuguesa e a Casa-Museu.

Até 2020, a cada visita nesta casa, os visitantes davam por si de chávena na mão a perder-se em conversas. Os pacotes de açúcar davam por vezes o mote, já que tinham sido personalizados pela Delta com frases de Saramago como “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam” ou “Cada um de nós é por enquanto a vida. Isso nos baste”. Interromper a visita com um café, “foi uma forma de repetir esse detalhe generoso de Saramago, mas com a pandemia tivemos de parar de o fazer, por questões de segurança. Aproveitámos para repensar o momento do café. A verdade é que as pessoas ficavam tão descontraídas que por vezes a visita seguinte se atrasava bastante. Se fazia uns visitantes muito felizes, deixava outros um pouco chateados”. 

A solução foi plantada do outro lado da estrada. Depois da visita ao edifício principal da casa, onde está a sala, quartos, cozinha e um jardim, atravessa-se a estrada para o edifício da biblioteca. Aqui estão os livros que o escritor teve por muitos anos numa cave, sem estantes nem organização. No pátio de entrada pôs uma oliveira que trouxe do Alentejo, entre os joelhos, no avião: é aqui que se toma agora o café português. Passou-se da pausa do café para o café da despedida. A tradição da casa cheia de conversas e ideias à volta da mesa mantém-se, garante María.

Quando está em Lanzarote, Pilar del Río vive aqui e sai sorrateira se alguma visita se cruza com ela. Mantém, no entanto, a tradição de receber artistas e intelectuais, e a cozinha continua a cheirar a refeições caseiras. “Agora está cá Leonardo Padura [escritor cubano]”, conta María, no início de março. “Esta noite vai comer bacalhau. A Pilar é boa cozinheira – e posso dizer que Leonardo Padura é um cafeinómano e está encantado por ter este café aqui.”