A partir do Ó Balcão, o chef quer mostrar como um restaurante pode ajudar a proteger um rio.

 

Na cozinha do Ó Balcão, o trabalho é grande, mas não tem dois metros e dezenas de quilos. São estas as dimensões dos siluros que Rodrigo Castelo desmancha umas portas à frente do seu restaurante, em Santarém. Este peixe de rio é o maior predador do Tejo, introduzido pela pesca desportiva pelo tamanho colossal que atinge: os pescadores gostam de tirar fotografias com este troféu que se alimenta dos peixes nativos.

Rodrigo Castelo faz curas deste e de outros peixes invasores do rio e constrói pratos em que são a personagem principal. A sua ideia é tornar visível o problema deste ecossistema adulterado pelo homem – e ser parte da solução. A sua investigação e compromisso com o Ribatejo valeu-lhe, no início deste ano, uma estrela verde Michelin, atribuída aos restaurantes atentos à sustentabilidade, e uma estrela Michelin, distinção superior para os restaurantes de “cozinha de grande nível onde vale a pena parar”. Tudo começou com os clientes sentados em grades de cerveja, em 2013. E agora, para onde vai? “Quem trabalha assim só tem tendência para melhorar”, responde com tranquilidade.

Chef Rodrigo Castelo

A taberna saiu do nome (até 2021, chamava-se Taberna Ó Balcão), mas não do espaço. À direita ainda está o balcão forrado a um sortido de azulejo hidráulico, os despenseiros de madeira e a pia em mármore. O espaço foi ficando mais intimista, num investimento que apontava às estrelas desde o início. “Quando abri a taberna, tinha 60 e tal petiscos – pezinhos de fricassé, passarinhos fritos, favas, rabo de toiro – as pessoas sentavam-se em bancos e cheguei a sentar clientes em grades de minis. Pouco tempo depois, fui com a minha mulher ao Belcanto [de José Avillez, na época com uma estrela Michelin] e disse: um dia vou ganhar uma estrela”, recorda Rodrigo Castelo. 

A tirada parecia inconsciente. Poucos anos antes, Rodrigo Castelo era delegado de suporte clínico na Johnson&Johnson e dava apoio aos médicos no uso de aparelhos da marca, durante cirurgias, por exemplo. Depois de um despedimento, quis concretizar o sonho de ter um restaurante. Com a ajuda de parceiros como a Delta, conseguiu comprar uma taberna gasta e aventurou-se como cozinheiro, apesar da falta de experiência. “A minha formação é ler sobre cozinha, todos os dias”, diz Rodrigo que também frequentou um curso na Associação de Cozinheiros Profissionais de Portugal (ACPP).

“Era um puto com 33 anos. Mas em tudo queria ser um pouco melhor todos os dias. Comecei a convidar colegas para virem cozinhar ao meu restaurante e eles aceitavam. Aprendi imenso a ver o que cozinhavam, telefonava-lhes a fazer perguntas e ainda hoje telefono a perguntar sobre técnicas. Noventa por cento do que sou é por causa dos cozinheiros de Portugal.”

Pouco depois, em 2015, Rodrigo Castelo criou o seu primeiro menu de degustação. “Às vezes aparecem-me recordações no telemóvel, vejo fotos desse menu e… que salto brutal! Mas na altura sentia o que sinto hoje: que estava a fazer a melhor coisa do mundo”, conta. Foi por essa altura que surgiu um snack que ainda hoje abre as refeições no Ó Balcão e que se tornou sinónimo da sua cozinha: o coscorão do rio até ao mar, um cone de massa frita que veio evoluindo e atualmente é recheado com creme de caranguejo, picadinho de peixe e espuma de camarinha. Era já uma anunciação da sua paixão pelo peixe de rio. 

Julgando que se tinha deixado de comer peixe de rio porque já ninguém lhe achava graça, Rodrigo Castelo descobriu outra realidade quando começou a acompanhar pescadores na safra. Peixes como as trutas, o sável ou a lampreia escasseiam, enquanto as redes vêm cheias de invasores predadores, como o lúcio-perca, o siluro. “Decidi meter–me num curso de Peixe de Rio no Museu de Ciência de Lisboa. Eu queria perceber os peixes nativos e ajudar a cuidar do rio”.

Com experiência anterior na cura de carnes velhas que fazia em conjunto com a Escola Superior de Agronomia de Santarém, decidiu testar o mesmo com estes peixes. A ideia é dar a dignidade de um peixe nobre àqueles que é urgente retirar do Tejo. “É preciso criar uma economia para os predadores. Há gente que não quer pagar pelo lúcio, por exemplo. Não pode ser. Temos de mostrar aos pescadores que compensa apanhar estes peixes. Para mim, o achigã é como uma dourada, a fataça pode ser um robalo e o siluro é um bacalhau”, atira como uma provocação. A prova é o prato de siluro panado e frito com açorda de algas e berbigão do rio: poderia ser um pequeno medalhão de bacalhau no centro de uma açorda cremosa. Não tendo a gelatina que se espera do peixe amado pelos portugueses, tem o seu sabor suave e ligeiramente curado.

Esta reflexão levada à prática diferenciou a sua cozinha no contexto nacional e terá sido uma das chaves das estrelas Michelin que ganhou. Por outro lado, a sua atenção a todo o produto que entra na cozinha e a vontade de o controlar reflete-se em cada prato. Continua a confecionar a língua de vaca curada e fumada que serve, assim como a cecina, uma espécie de presunto de vaca. Tudo isto é viciante, diz. “Para mim, os curados é uma coisa tão intuitiva, é o que me deixa vaidoso. Eu não gosto só de cozinhar. Tens de dominar o processo para perceber porque é que as coisas acontecem. Isto é como no xadrez: tens de dominar o tabuleiro.”

O cozinheiro todo-poderoso avança agora com uma horta própria e com uma cozinha de investigação que lhe vai permitir aumentar a quantidade de testes. Enquanto isso, a militância pelo produto vai sendo sublimada, na ementa, com memórias gustativas de toda a vida: a receita do cremoso de caranguejo e lagostim do rio foi terminada quando a avó morreu e, por isso, tem um arroz de açafrão para apanhar todos os molhos – tal como ela fazia. Do produto à inspiração, o Ribatejo é o fornecedor do Ó Balcão e Rodrigo Castelo quer, no fundo, influenciar na valorização deste território. “Amo o Ribatejo à carga, como se diz aqui”. Quem vem de fora, aprende a gostar com ele.