Foi no The Coffee House Experience que Rita Nabeiro se sentou à conversa com Alexandra Machado. A empreendedora social, que largou uma carreira de sucesso na Nike Portugal para fundar a Girl Move, falou sobre o papel da fé no seu percurso, sobre a autoestima na liderança e sobre o que é preciso para criar mudanças sistémicas no mundo.
Foste gestora de produto no grupo Entreposto, no setor automóvel, foste diretora de marketing e comercial no grupo Jerónimo Martins, e, durante 10 anos, assumiste a direção-geral da Nike Portugal. Em 2012, abandonaste a carreira que tinhas construído e foste noutra direção: criaste a Girl Move, uma fundação que apoia raparigas em países subdesenvolvidos, formando-as para a liderança. Como chegaste a esta decisão? Há quanto tempo pensavas nisto?
A decisão aconteceu quando estava ali nos quarentas. Tinha todo um passado de experiências diferentes na área empresarial, e tinha muita vontade de colocar toda a minha bagagem, toda a experiência de liderança que fui tendo ao longo de vinte e tal anos, ao serviço de uma causa maior. Acredito muito na procura deste sentido de propósito nas nossas vidas; em procurar que os nossos talentos sejam postos a render. Enquanto estive na Nike fui pensando mais nisso… A Nike tem uma fundação que é a Girl Effect, que defende a educação no feminino como forma de combate à pobreza no mundo. Mas, na altura, o meu trabalho era outro.
Achas que ficou aí uma sementinha?
Deu-me uma noção de realidade. Aquilo que se passa no mundo, em particular a falta de acesso das raparigas à educação, é algo que nós não vivemos no nosso dia a dia, quer em Portugal, quer na Europa. E acabamos por não ter noção da dimensão da realidade, do que se passa em vários outros países. Isto deu-me uma perspetiva, uma base. A minha formação é em gestão e tenho uma lógica de funcionamento muito económica, portanto, para mim é muito óbvio que, se queremos combater e erradicar a pobreza no mundo, uma estratégia fundamental é promover a educação de todas as raparigas e mulheres, assim como promover a participação ativa das mulheres no desenvolvimento da sociedade. E tomar consciência de que isto não acontecia – particularmente, que isto não acontecia em países de língua portuguesa – era algo que me inquietava. Foi uma combinação de fatores: por um lado, era uma causa em que eu sabia que podia ter efeito; por outro lado, uma vontade muito grande de colocar o meu talento e a minha experiência profissional a render. Sou mãe, tenho três filhos, acho que esse é o meu bem maior, mas precisamente por ser mãe sinto uma responsabilidade enorme de criar um legado. Foi uma forma de o fazer.
Rita Nabeiro e Alexandra Machado
Na Nike estavas numa posição confortável e tinhas um futuro auspicioso. Foi uma mudança profissional, mas também de vida…
A minha vida profissional está muito ligada à minha vida pessoal. Acho fundamental o constante crescimento, continuarmos sempre à procura do nosso próprio desenvolvimento. De facto, eu sentia-me ali perfeitamente na minha zona de conforto, como dizes, a todos os níveis. E tudo o que fazia, fazia com imensa facilidade, porque já estava há dez anos a fazer o mesmo. Isso promove menos o meu crescimento. E imaginar-me como CEO da Adidas, por exemplo, não me iluminava o coração. Senti mesmo a necessidade de romper totalmente. Estava também numa reflexão dos quarentas, de começar a projetar, e eu vejo-me a trabalhar até aos oitentas, até onde Deus quiser. Mas sentia que era necessário começar de novo. Foi arriscado, obviamente, sobretudo do ponto de vista financeiro. Também o fiz porque tinha um suporte familiar importante. Foi arriscar, mas sempre numa lógica de crescer com o processo e de fazer crescer o mundo à minha volta.
Disseste, na altura em que fundaste a Girl Move, que foste “totalmente levada ao colo por Deus para esta missão”. De que forma?
Sou católica praticante e a fé é algo muito importante na minha vida. Neste meu processo de discernimento de vida, perguntei-me como é que podia ter mais amor ao próximo e entregar-me mais a ele. Na altura, tinha um padre muito meu amigo, que era meu orientador espiritual, que durante muitos anos – enquanto estava na Nike – me dizia: “Ó Alexandra, mas quando é que te fartas de vender ténis?” Ele foi muito marcante. Às vezes é importante sermos desinstalados por pessoas ao nosso lado.“Tu podes fazer muito mais”, dizia-me ele. A fé é a procura de Deus presente na minha vida. E amar mais o próximo também me desinstalou do lugar onde estava.
Os teus primeiros 27 anos de carreira foram pelo caminho que escolheste ou as coisas foram acontecendo sem muitos planos?
É um misto. A vida é feita de oportunidades e depende depois de como as aproveitamos e multiplicamos. Também há um sentido de propósito, de como tu queres desenvolver a tua carreira. Quando saí da universidade, fiquei a dar aulas durante dois anos. Sempre gostei de estratégia e de liderança, e para mim era claro que queria seguir marketing. Fui para a Unilever, e ao mesmo tempo fui entrevistada pelo Luís Amaral, que até hoje é muito importante na minha vida – e na da Girl Move, também. Ele, na altura, era diretor de marketing do Entreposto, uma empresa portuguesa que estava a desenvolver um plano estratégico de modernização. Tu sais da faculdade com alguns conceitos, mas com pouco mais, precisas de ir aprender com alguém… O Luís foi muito determinante na minha vida porque, além de ter sido o meu primeiro chefe, acabou por se tornar meu amigo. Quando saí da Nike, e pensei em iniciar um novo caminho, foi com o Luís que fui ter. Ele viaja imenso e acredita que África tem um potencial muito grande e que, para assumir a sua preponderância no mundo, a educação das mulheres tem de se alterar substancialmente. Ele tinha esta visão e acompanhou-me neste processo. A Girl Move é fundada por mim e por ele.
Porquê Moçambique?
Eu e o Luís queríamos trabalhar e fazer a diferença num país de língua portuguesa. Moçambique é um dos países mais pobres do mundo e é também dos que regista mais casos de maternidade infantil e de abandono escolar. Os números são aterradores. Mais de metade das miúdas até aos 18 anos já está à espera de um filho. Apenas 10% das raparigas terminam o ensino secundário. Isto leva a um ciclo de pobreza planeada, que não acontece só em Moçambique, acontece também noutros países de língua portuguesa. Na altura fizemos uma análise e, do ponto de vista de dimensão e de impacto possível, sentimos que Moçambique seria o sítio ideal. Ao contrário do que muitas vezes as pessoas pensam, não tenho uma história moçambicana nem africana. Quando saí da Nike, em maio de 2012, fiz uma grande viagem a Moçambique, a descobrir e a sentir o país, e apaixonei-me. Acima de tudo pela mulher moçambicana, tipicamente habituada a lidar com sofrimento, com preconceito e com injustiça, mas sempre com um sorriso na cara, a cantar e a dançar, com uma força gigante para levar tudo para a frente.
Desse tempo, há alguma história que te tenha marcado?
Uma das que mais me marcou, por ser uma surpresa na altura, foi nesta viagem que fiz pelas províncias de Moçambique, de comboio, totalmente despojada de conforto. Estive à conversa com uma senhora sobre o tema da poligamia, que faz com que seja comum um homem ter várias mulheres e deixá-las com seis ou sete filhos, para partir para outra. Esta conversa marcou-me em particular porque não conhecia a realidade. Nos anos seguintes, fui vendo repetidamente estas situações acontecerem. Aquela viagem de comboio recorda-me de onde eu parti e por que parti.
“O desafio é gigante porque o que a Girl Move faz é uma gota no oceano. Sei que o oceano é feito de pequenas gotas e estou bem com isso, mas tenho a consciência de que temos pela frente um oceano inteiro.”
Qual é a missão da Girl Move?
A nossa missão é promover uma nova geração de mulheres que sejam agentes de desenvolvimento do país. Apesar de baixo, já existe um número de mulheres que combatem uma série de preconceitos, que terminam a universidade e que entram no mercado de trabalho. Elas têm muita vontade, até pelo percurso que tiveram, de mudar o país delas, mas acabam por ficar perdidas e a pensar: “Como é que o vou fazer?”. Nós trabalhamos com as jovens que terminam a universidade, fazemos um recrutamento a nível nacional. Recebemos atualmente mais de cinco mil candidaturas aos programas da Girl Move e selecionamos daí 30 a 40 Girl Movers – como elas se chamam a si próprias –, que são as que consideramos que têm mais capacidade de virem a ser efetivamente os novos líderes de que África precisa. Desafiamo-las para o programa Change, que funciona na nossa Academia, que fica em Nampula, no norte do país, e termina com um estágio internacional de três meses. Aquilo funciona para elas como um ano de Erasmus, em que vão conhecer uma nova realidade. Se querem mudar o mundo, têm de conhecer o mundo – e muitas delas nunca tinham antes saído de Moçambique ou sequer da província. É uma oportunidade de ganharem experiência, de ganharem vida. O que a Girl Move promove é, então, uma caminhada de descobertas, pelo reforço de competências, pelo desenvolvimento de carreira e por um lado humanitário. Cada uma das Girl Movers desenvolve um círculo de irmandade entre diferentes gerações de raparigas, que são referência mútua durante aquele ano. A Girl Mover, já licenciada, acompanha três estudantes universitárias e ainda 30 a 40 jovens que estão no final do ensino primário, sujeitas a uma elevadíssima probabilidade de abandonarem a escola, de casarem e de terem filhos prematuramente. O que estamos a fazer é promover o encontro de novas referências.
E que impacto têm essas novas referências?
Da mesma forma que eu fui influenciada pela minha mãe e por outros modelos de referência à minha volta, os modelos de referência destas jovens são as suas avós e mães, que saíram da escola, casaram-se e tiveram filhos. Se queremos combater a maternidade infantil em África, temos de fazer uma rutura, criar novos modelos de referência. O que a Girl Move faz é pôr estas raparigas em contacto umas com as outras, em troca de experiências – que é virtuosa, nos dois sentidos. E os nossos indicadores de sucesso são extraordinários. Nós trabalhamos anualmente com mil a 1500 raparigas e concluímos que, ao final do ano, mais de 90% delas continuam o ensino secundário, a maternidade infantil é nula e os casamentos precoces estão perto disso. Estes indicadores contrariam os do país. E a inovação social que está aqui é uma: a substituição de valores de referência. Só mudamos o país quando conseguirmos mudar as pessoas em lugares de liderança. Por isso, a nossa aposta é em capacitar as líderes para que, daqui a alguns anos, elas possam estar em cargos de decisão – na gestão, na política, nas organizações sociais – e muni-las de um sentido de liderança muito diferente do que ainda hoje se vê no mundo. A ideia é liderar com um sentido de propósito: liderar servindo. Para isso, temos de criar competências de empatia e de reconhecimento do que existe na realidade. Muitas vezes há uma enorme indiferença, fruto do desconhecimento.
Ao olhares para estes indicadores, que provam que a mudança está a acontecer, o que sentes?
Sinto uma enorme perplexidade. Nunca imaginei que, passados dez anos, a Girl Move tivesse esta dimensão. Neste momento estamos já a pensar na escalabilidade do que estamos a fazer… Nunca sonhei com esta dimensão. Às vezes, perguntam-me o que faria de diferente se voltasse atrás, e a única coisa seria começar antes, talvez. A riqueza de vida que eu tenho… É de uma enorme dificuldade, trabalho muito mais e tenho muitos mais desafios do que em qualquer outro projeto. Mas destacam-se a riqueza humana e o constante crescimento. Ainda hoje, o desafio é gigante porque o que a Girl Move faz é uma gota no oceano. Sei que o oceano é feito de pequenas gotas e estou bem com isso, mas tenho a consciência de que temos pela frente um oceano inteiro.
Acompanhas de perto mulheres muito vulneráveis por circunstâncias injustas, que lhes são alheias. Deve ser difícil manter essa visão mais ampla e objetiva sobre a tua missão.
As injustiças geram-me revolta, mas desencadeiam uma resposta: são o que me incentiva a agir. É no sentimento de injustiça que eu crio força para continuar o que estamos a fazer. Quando a coisa está mais complicada, renasço. Neste programa da Girl Move, em que acompanhamos futuras líderes, percebemos que um fator fundamental é a autoestima destas jovens. É por isso que há três etapas claras do programa: o Lead Self, o Lead With Others e o Change The World. Começamos pela liderança pessoal por um motivo. Estas jovens têm um potencial gigante, elas surpreendem-nos e inspiram-nos, mas durante muitos anos foi-lhes negado pela sociedade o reconhecimento desta força. Isto é um problema, e grande parte do programa tem que ver com elas reconhecerem as suas histórias e saberem contá-las, para que possam ser modelos de referência para as mais novas, mas também para que tomem consciência da força e do poder que elas têm. Isto nem sempre é fácil multiplicar… O nosso objetivo é chegar aos biliões de raparigas que não têm acesso a educação, mas temos de tentar fazê-lo de uma forma sensata, sem perder a qualidade.
Revês-te na força das raparigas que acompanhas?
Acho que sim, elas costumam dizer que sim. Segundo os testemunhos delas, eu inspiro-as. Mas elas inspiram-me a mim e dão-me força para continuar. Porque não é um percurso fácil. Não é fácil ter os objetivos de uma empresa social sem as receitas de uma empresa. Mas tenho muita motivação por causa destas raparigas. Acho que aquilo que eu faço – e isto tem um bocadinho que ver com a minha fé – é muito amplificado porque estou para o bem. Há uma força superior a nós que, quando estamos para o bem, faz com que as coisas se multipliquem.
Há alguma rapariga que te tenha marcado em particular?
A história que mais me marcou foi talvez a de uma rapariga que morreu em novembro, aos 13 anos, a ter o seu próprio filho. Era um dia muito especial… Moçambique tem uma ministra da Economia, Luísa Diogo, a primeira ministra do país, uma figura que eu sempre admirei. Nesse dia, que também era o dia dos meus anos, tínhamos convidado a Luísa Diogo para visitar a Academia e ela estava fascinada. “Na essência do conceito, eu sou uma Girl Mover”, dizia ela. E nesse mesmo dia recebemos a triste notícia sobre esta nossa rapariga… Foi uma das histórias mais difíceis, mas há muitas outras da mesma natureza, que nem te vou contar. Não deixo de me emocionar cada vez que falo nisto. O seu nome era Esperança. E também me dá esperança para continuar a lutar porque, ao mesmo tempo, há muitos sinais positivos, e são esses sinais que nos fazem ir em frente.
De que é que mais te orgulhas neste percurso?
Das Girl Movers e da equipa que tenho na Girl Move. Orgulho-me também de ter a alma portuguesa a marcar o mundo. Há muitas pessoas que me dizem: “então, mas Portugal tem tantos desafios…” – e tem. Mas quando temos a coragem de olhar para aquilo que verdadeiramente nós fomos na História, acho que devemos ter a noção de que a nossa responsabilidade no mundo é muito maior do que apenas os nossos dez milhões.
Revês-te na força das raparigas que acompanhas?
Acho que sim, elas costumam dizer que sim. Segundo os testemunhos delas, eu inspiro-as. Mas elas inspiram-me a mim e dão-me força para continuar. Porque não é um percurso fácil. Não é fácil ter os objetivos de uma empresa social sem as receitas de uma empresa. Mas tenho muita motivação por causa destas raparigas. Acho que aquilo que eu faço – e isto tem um bocadinho que ver com a minha fé – é muito amplificado porque estou para o bem. Há uma força superior a nós que, quando estamos para o bem, faz com que as coisas se multipliquem.
Há alguma rapariga que te tenha marcado em particular?
A história que mais me marcou foi talvez a de uma rapariga que morreu em novembro, aos 13 anos, a ter o seu próprio filho. Era um dia muito especial… Moçambique tem uma ministra da Economia, Luísa Diogo, a primeira ministra do país, uma figura que eu sempre admirei. Nesse dia, que também era o dia dos meus anos, tínhamos convidado a Luísa Diogo para visitar a Academia e ela estava fascinada. “Na essência do conceito, eu sou uma Girl Mover”, dizia ela. E nesse mesmo dia recebemos a triste notícia sobre esta nossa rapariga… Foi uma das histórias mais difíceis, mas há muitas outras da mesma natureza, que nem te vou contar. Não deixo de me emocionar cada vez que falo nisto. O seu nome era Esperança. E também me dá esperança para continuar a lutar porque, ao mesmo tempo, há muitos sinais positivos, e são esses sinais que nos fazem ir em frente.
De que é que mais te orgulhas neste percurso?
Das Girl Movers e da equipa que tenho na Girl Move. Orgulho-me também de ter a alma portuguesa a marcar o mundo. Há muitas pessoas que me dizem: “então, mas Portugal tem tantos desafios…” – e tem. Mas quando temos a coragem de olhar para aquilo que verdadeiramente nós fomos na História, acho que devemos ter a noção de que a nossa responsabilidade no mundo é muito maior do que apenas os nossos dez milhões.
Consegue-se separar o trabalho da vida pessoal quando se trabalha com uma causa social em que se acredita tanto?
Não, eu não consigo. Há muito tempo que desisti de criar compartimentos. Sou mãe, sou amiga, sou filha, tenho estas várias vertentes, mas sou uma só. A Girl Move é uma causa, é uma missão de vida.
Com que é que sonhas para a Girl Move?
Neste momento, estamos a criar uma comunidade internacional que faz a ponte entre raparigas que vivem em países em desenvolvimento e líderes internacionais, para criar estes círculos. Se os círculos de referência funcionam em Moçambique, seguramente podem ser base e plataforma para muitos outros países. O meu sonho é escalar com qualidade aquilo que estamos a fazer e criar mais impacto. E gostava muito que uma das Girl Movers fosse um dia primeira-ministra, ou ministra da Educação, e estabelecesse como regra básica a existência desta lógica de modelos de referência, e que deixassem de existir casamentos infantis.
Aí davas a tua missão por terminada?
Talvez, sim, talvez. Mas provavelmente arranjava uma nova causa.