1971. O ano do grande nevão
Manuel António Soeirinho, de 70 anos, lembra-se bem do domingo em que viu neve a sério em Campo Maior. “Faz parte da minha juventude”, recorda o antigo trabalhador do grupo Delta Cafés, que começou “no setor dos licores”. Nessa manhã, preparava-se para entrar em campo na equipa de juvenis de futebol do Campomaiorense. “Começaram a cair umas bolinhas”, conta. “Ficámos abismados, aquilo era uma novidade para nós.” O jogo, com uma equipa de Portalegre para o campeonato distrital, não foi afetado pela neve.
“Cada vez caía mais, mas ainda tivemos tempo de fazer o jogo. Fomos para o intervalo e na segunda parte ficou pior, parecia granizo.”
A equipa do Campomaiorense acabou por vencer – “Ganhávamos tudo, fomos campeões e passámos ao [campeonato] nacional”, garante Soeirinho –, mas a neve não deu tréguas. De tal maneira, que o jogo da tarde, da equipa sénior, não chegou a acontecer. “Jogavam com o Castelo Branco, mas a neve aumentou de tal maneira no espaço dessas três horas que teve de ser cancelado”, continua. “Aquilo foi uma festa para a juventude. Era novidade e caiu com muita intensidade, nunca mais caiu assim.”
Esse nevão, o maior da história da região, terá acontecido a 3 de janeiro de 1971, um domingo. A Rádio Elvas considera-o o “maior nevão das últimas seis ou sete décadas” num artigo que assinalava os 50 anos do fenómeno. “A neve começou a cair à hora do almoço, o nevão prolongou-se por toda a tarde e, ao início da noite, Elvas era uma cidade invulgarmente coberta por uma espessa camada de neve”, lê-se. No dia seguinte, as ruas e os carros ainda estavam brancos. “Quando as crianças e jovens se dirigiam para as escolas, no primeiro dia de aulas do segundo período escolar, a neve ainda estava bem presente nos cenários da cidade”, diz o mesmo artigo, acompanhado por imagens do fotógrafo amador Carlos Curvelo.
1945. Neve a preto e branco
Antes disso, a 16 de janeiro de 1945, também há registos de neve em Elvas e em Campo Maior. No livro Campo Maior a Preto e Branco, de Fernando da Silva Dias, um retrato da vila entre os anos 20 e os anos 50, o nevão merece destaque num capítulo com fotografias da vila e dos campos cobertos de neve. “O rigoroso inverno que este ano temos vindo a ser obrigados a suportar trouxe–nos, no princípio desta semana, um espetáculo que, por a ele não estarmos habituados, originou um movimento de intensa curiosidade de toda a população”, escrevia-se a 20 de janeiro de 1945 no Correio Elvense, citado no livro.
“Na noite de segunda para terça-feira, a neve caiu abundantemente, de modo que a cidade, ao acordar, estava coberta dum manto branco que lhe dava um aspeto de rara beleza e os campos que a rodeiam constituíam um alvo tapete, cuja alvura era apenas quebrada pelas árvores que dele emergiam e de cujos ramos pendiam flocos que lhes davam um aspeto estranho.”
Segundo o mesmo jornal, apesar do frio, “a raridade” do fenómeno atraiu para os campos um grande número de pessoas “que não quiseram perder o espetáculo”.
1982. Campo maior coberta
Francisca Moura, de 66 anos, reformada e antiga cozinheira de Rui Nabeiro, não era nascida no nevão de 1945. E também não tem memória do nevão de 1971. “Lembro-me perfeitamente de outra altura em que nevou muito, em 1982”, recorda. “Foi bonito e ficou-nos gravado na memória os telhados todos cheios de neve, muito branquinhos, o chão e os carros.” O momento está registado numa fotografia, perdida algures em casa da sua mãe, com o filho e o sobrinho pequenos, “a fazer bonequinhos na neve”, afirma. Na altura, trabalhava como “empacotadeira” na Delta e costumava ir a pé para o trabalho. “Normalmente, chegávamos em quinze minutos, mas demorámos meia hora porque não estávamos habituadas a andar na neve”, conta. Costumava entrar às cinco da manhã e fazia o caminho ainda de noite, com uma antiga colega, Mariana Pingo.
“Ela era muito magrinha e caía mais do que eu. Íamo-nos amparando, eu levantava-a. Era uma risada, não nos chegávamos a magoar.”
José Francisco Velez, de 86 anos, conhecido em Campo Maior como Zé da Rita, não se lembra de datas, mas recorda a queda que a sua mulher deu. “Nevou tanto que a minha mulher escorregou e pregou um grande estoiro”, recorda o antigo diretor do Campomaiorense que diz ainda ser “doente da bola”. “Lembro-me de que tivemos de tirar neve da varanda.”
Manuel António Soeirinho também tem uma história no nevão de 1982, ano em que conseguiu comprar um carro novo, um Citroën. “Ainda o tenho, tem 42 anos, é um clássico”, orgulha-se. “Eu tinha um zelo pela viatura… Tinha o carro na rua 13 de Dezembro, junto à fábrica do anis, onde era a Sociedade Dómúz [de licores]. Trabalhava lá desde 1972 e ao fim de dez anos, em 1982, comprei aquela viatura nova”, continua. Com a neve a acumular-se, não hesitou: “Fui a correr pôr o carro numa garagem. Ainda tive essa possibilidade e assim fiquei mais descansado.”
2010. A última neve
João Sequeira, de 63 anos, antigo ajudante de camionista na Delta, viu neve em vários sítios do país. “Em Trás-os-Montes, na Guarda… Tínhamos de parar porque não podíamos andar com o camião e entregávamos as coisas às costas”, recorda. Em Campo Maior, viu nevar em 1982. “Fui brincar com os meus sobrinhos para a avenida [da Liberdade]”, diz. “E quando voltou a nevar, em 2010, fui brincar com eles também. Aí estava a assar sardinhas na varanda quando começou.” A neve, a 10 de janeiro de 2010, embora marcante, terá sido mais fraca do que em anos anteriores. “Uma coisa leve”, comenta José Francisco Velez. João Sequeira recorda que não foi suficiente para estragar o almoço. “Ainda acabei de assar as sardinhas na varanda”, ri-se.
O jornal Público noticiava, na altura, a vaga de frio no país, com queda de neve em vários pontos, “incluindo no Alentejo”, com neve em Campo Maior, Elvas e Marvão, “um fenómeno raro nos dois primeiros casos”. Segundo a Agência Lusa, a neve e o gelo obrigaram até ao corte da estrada nacional 371, entre Campo Maior e Degolados. No blogue AlémCaia, Francisco Galego sublinha que “nunca tinha visto a vila assim”, coberta de branco. “Tenho uma vaga ideia de, muito pequeno, ter brincado com neve.” Saiu para a rua, até ao jardim, e deparou-se com um “espetáculo inesperado”, com vizinhos a atirar bolas de neve uns aos outros e um grupo “a tentar construir um boneco”. Rita Guerrinha, de 66 anos, reformada, era uma delas. “Fomos brincar para o jardim com as crianças, com uns plásticos para escorregarmos na neve, foi divertido”, conta a antiga técnica de limpeza da Delta, que começou a trabalhar aos 13 anos na fábrica de tomate. “Lembro-me da neve em criança, mas quando era criança não se podia brincar, tinha de se trabalhar.”