Com a elegância de uma clássica bandeja na mão, ou com andar rápido e piada na ponta da língua, um empregado de mesa é a cara de um restaurante. É a conversa simpática, o conselho sábio, a ligação humana que pode transformar um restaurante numa casa. Trabalham enquanto os outros se divertem e para que os outros se divirtam. Estas são as histórias de seis chefes de sala, mestres em bem-receber.
Paulo Pereira. Gambrinus, Lisboa
Paulo Pereira. Gambrinus
Como um atleta de alta competição, como uma estrela planetária: “quando vamos para a sala, vamos para um palco. Temos de estar ao mais alto nível”. É assim que Paulo Pereira começa cada refeição no Gambrinus, um dos restaurantes de luxo mais renomados de Lisboa, fundado em 1936.
De farda preta e grená, o espetáculo é todos os dias. Na barra, associada a refeições rápidas ou a uma cerveja, ou nas salas interiores, mais formais, o serviço no Gambrinus é à antiga e isso, hoje em dia, é extraordinário. “Há uns anos pensava, será que o nosso serviço ainda faz sentido? Noutros restaurantes [de luxo] há uma pessoa para tirar o pedido, outra para servir o vinho. Nós acompanhamos o cliente do início ao fim da refeição. Desossamos a carne, espinhamos o peixe, fazemos o café de balão, os crepes Suzette – tudo junto à mesa. Hoje, vejo que as pessoas filmam o nosso serviço com o telemóvel: é porque faz sentido”, diz Paulo Pereira, chefe de mesa, como se diz neste restaurante, “maître, como dizem os clientes mais antigos”.
Chegou aqui há quase 30 anos, em 1995, tinha 23. Na altura, pensou que não ficaria por muito tempo: entrava de manhã cedo e saía de madrugada, com um pequeno intervalo entre refeições que mal dava para estar com a filha. Perdia-se tempo com a família, algo que está a mudar, diz. No entanto, “comecei a apaixonar-me pelo Gambrinus”.
Foi fazendo dos colegas família – e de alguns clientes também – e hoje, se está no Gambrinus, nem olha para o relógio. É por isso, diz, que valoriza tanto um jantar com amigos. “Não tenham pena de mim, que eu aproveito bem”, diz Paulo, já a pensar na próxima viagem.
Vítor Magalhães. O Antunes, Porto
Vítor Magalhães, O Antunes
A sala do Antunes, na rua do Bonjardim, no Porto, está renovada e fica agora uns números à frente da morada original, inaugurada há 60 anos. Apesar dos azulejos novos e da inovação do jardim vertical à entrada, o espírito é o mesmo: Vítor Magalhães continua a correr mesas sempre a dar música, mesmo a braços com as pesadas travessas de pernil. “Passo muito tempo a cantar, especialmente quando a malta é jovem. Às tantas, está toda a gente a cantar”, conta.
As cantigas tradicionais e a conversa sobre qualquer assunto com umas piadas pelo meio (algumas espontâneas, outras do seu vasto catálogo, confessa) são o seu modus operandi. Assim faz, há 23 anos, carreira num dos mais conhecidos restaurantes de cozinha regional do Porto. “É uma casa. Quando o cliente e o produto são bons, o serviço de sala é muito fácil”, diz Vítor Magalhães, colocando em segundo plano as “muitas horas em cima das pernas nas maratonas feitas entre as mesas ou as longas horas de jornada, que mal dão para ver os filhos. “Levo o filho à escola e ao lanche é que acabo por estar um bocadinho com a família… Mas nem dá para ir a casa. É preciso gostar muito da restauração para ter um sorriso sempre na cara”, afirma.
Vítor Magalhães veio parar ao Antunes por acaso, estava pronto para emigrar. Aparecer uma oportunidade num restaurante tão antigo quanto popular foi a melhor sorte. “Passam por aqui gerações. Há mesas que, no lugar onde se sentava o pai, agora se senta o filho; há grupos que vieram como estudantes e agora são médicos; senhoras que estavam grávidas e, uns tempos depois, os filhos já andam aí. São pessoas próximas e não deixam de vir mostrar a família a crescer. O contacto com os clientes é o mais gratificante.”
Abílio Norte. O Rápido, Porto
Abílio Norte, O Rápido
Quase a começar mais uma noite de jantares, Abílio atende o telefone e, depois de algumas palavras do outro lado, a saudação é pronta: “Como está, sotora? Já lhe conheço a voz”. A chamada acontece perto da estação de São Bento, no Porto, e essa proximidade levou ao batismo deste restaurante. O Rápido nasceu há 70 anos e, na década de 1980, ganhou este nome em referência ao comboio que ligava o Porto a Lisboa em extraordinárias quatro horas. Os comboios vão e vêm (este deixou de operar), mas a cozinha tradicional portuguesa d’O Rápido fica e alguns clientes são fiéis há 40 anos. Abílio Norte era um deles, até passar para o outro lado: o serviço de sala.
Antes de o irmão, Francisco, ficar com a casa, Abílio já era cliente d’ O Rápido, conhecia bem o menu e até dava uma ajuda em dias de aperto. A mudança não foi, portanto, brusca. “O mais importante é conhecer os pratos, saber como são confecionados e estar à vontade para falar sobre eles. Temos de saber aconselhar”. Para Abílio, a cozinha é o forte da casa – mais do que o serviço de sala, ri-se – mas se alguém está na dúvida entre as tripas à moda do Porto ou o bacalhau à Rápido, é ele quem descreve cada ingrediente com toda a paciência e felicidade.
Esse é o forte de Abílio. Antes do serviço de sala num restaurante, teve uma garrafeira no Porto e das explicações sobre o vinho do Porto passou para os detalhes sobre as tripas. “Sou honesto, digo exatamente o que é: intestino de porco muito bem lavado e temperado.” Nada que precise de dizer aos clientes habituais, mas muito útil para converter a clientela americana.
Luís Reis. Belcanto, Lisboa
Luís Reis, Belcanto
Ser empregado de mesa ou chefe de sala é “um trabalho que nunca está feito”. O teste é todos os dias, especialmente num duas estrelas Michelin, como o Belcanto. O cliente entra, atualmente, com muito conhecimento sobre gastronomia e com grandes expectativas sobre a experiência da refeição, diz Luís Reis, chefe de sala e gerente do restaurante chefiado por José Avillez. Um bom chef de cozinha e um bom chefe de sala são a receita que não desilude.
“Felizmente tive a felicidade de trabalhar com bons chefs ao longo da vida”, diz Luís, que passou pelo Tavares Rico e por restaurantes de Justa Nobre. “É preciso confiança no que estamos a apresentar”, diz Luís Reis. Se a alta-cozinha tem evoluído muito nos últimos anos – em técnica, produtos, tendências – quem está na sala não pode ficar para trás. O estudo sobre este universo tem de fazer parte do dia a dia. “Temos as influências profissionais dos mais velhos, mas há um trabalho invisível e individual que cada um tem de fazer”.
Luís Reis não tem dúvidas de que evoluiu muito desde que integrou a equipa fundadora do Belcanto, aperfeiçoou uma das faculdades mais importantes: a inteligência emocional. “Saber gerir emoções permite-nos ser a cara do restau-rante”, afirma, “saber identificar o cliente que não quer ser incomodado e aquele que quer saber todos os detalhes sobre o peixe que tem à frente”.
Aos 48 anos, Luís tem já uma família madura, com quatro filhos. São eles que sofrem mais com a dedicação a esta carreira de que se orgulha. Há poucas oportunidades de se sentar à mesa de um restaurante com a família e, quando acontece, um empregado simpático torna tudo mais especial.
João Almeida. O Pote, Lisboa
João Almeida, O Pote
João Almeida tem uma meta: poder dizer que está há 50 anos n’ O Pote. Acontecerá no próximo mês de janeiro e não há razão para desistir até lá: “sinto-me bem”, diz com naturalidade. O restaurante da avenida João XXI, em Lisboa, já foi conhecido por ser poiso dos intelectuais das Avenidas Novas. As conversas com esses e outros clientes são o melhor que retira destas décadas a aperfeiçoar o serviço de sala.
Como muitos, João Almeida veio do interior para Lisboa em jovem, nos anos 60. Depois de caixeiro ou moço de recados, passou a empregado de mesa, com cerca de 20 anos. Na altura, podia beber-se uma cerveja ao balcão a qualquer hora da tarde e, por isso, os intervalos para quem trabalhava eram nenhuns. Às cinco da tarde, a casa já estava completamente cheia de quem terminava o seu dia de trabalho, mas para os empregados d’ O Pote a saída era lá para as três da manhã. Por causa desta experiência de vida, aos que se iniciam nesta casa aconselha sempre “dedicação e disponibilidade”. “Não podemos estar a olhar para o relógio, a pensar que chegou a minha hora e tenho de sair, porque nem sempre é possível.”
Esta generosidade é recompensada. “O que mais gosto é o relacionamento com as pessoas, o que se aprende e as amizades que se criam”, confessa. Estas relações enriqueceram-no e levaram-no a descobrir uma vocação que não conhecia, incentivado por personalidades como Daniel Sampaio ou Luís Osório. Além de chefe de sala, João Almeida é escritor. Contando com romances, como Descalços em Tempos de Botas, um livro de poesia popular e um guia de restaurantes com histórias da sua geração, já lá vão quatro livros publicados.
José Silva. O Gaveto, Matosinhos
José Silva, O Gaveto
Num restaurante onde os funcionários permanecem anos e onde se passam tantas horas por dia, é comum ouvir-se dizer que os colegas são como uma família. No caso d’ O Gaveto, restaurante afamado de Matosinhos, a família está aqui literalmente: José Silva e o irmão, João, estão ao leme desta casa que celebra 40 anos em 2024; o pai, Manuel Pinheiro, ainda aparece para conversar com os clientes–amigos e garantir que o ambiente se mantém familiar como sempre, explica José Silva: “vem fazer o trabalho de relações públicas”.
Crescendo no Gaveto, entre o balcão de cervejaria e a sala, José Silva não teve grande escolha. Uma vida ao serviço no Gaveto reflete-se hoje numa valorização da sua pessoa pelos clientes. “Ontem fui ao Gaveto e não o vi”, diz um habitué. José retribui com atenção ao detalhe. “Temos clientes fundadores e quanto mais anos de casa, mais gente vamos conhecendo. Os clientes gostam de entrar e não ter de responder a muitas perguntas: já sabemos que aquele quer o pão bem torrado, que água bebe, de que mesa gosta.” Há que guardar todas estas informações particulares, mas basta ser especialista nos gostos pessoais dos clientes.
É preciso estar atento ao mundo a evoluir. Nos anos 80, quando o Gaveto abriu as portas, o público gostava de entrar para lanchar marisco e beber um fino. Agora, donos e funcionários de sala estudam regiões vínicas, castas e recebem formações anuais sobre os copos adequados a cada vinho. Houve essa inclinação no público e o serviço de sala respondeu, sempre com a mesma simpatia e visão periférica. “Temos de ser, acima de tudo, bons comunicadores e, como um jogador de futebol, ter visão de campo: olhar para as mesas todas e saber o que é preciso em cada uma”. É um jogo de equipa.