E o povo quis em 2020 – mas a pandemia não deixou. As festas só deverão regressar em 2023, mas entretanto receberam o prémio mais desejado: foram classificadas como Património Imaterial da Humanidade.
Praça Velha
Ainda não é este ano que as ruas de Campo Maior vão voltar a enfeitar-se com flores de papel. Ainda será preciso esperar mais um ano para que se realizem novamente as Festas do Povo. São, como o nome indica, festas tradicionais, com concertos e ranchos populares e barraquinhas de comida e bebida, como quase todas as festas. Mas são muito mais do que isso. Durante uma semana, ou até mais, as ruas de Campo Maior ficam transformadas em grandes jardins floridos. Flores de todas as cores e de todos os feitios, flores cobrindo completamente as ruas, de um lado ao outro, filtrando a luz do sol e dando à vila um ambiente de “cidade encantada”. Flores cortadas e dobradas de forma tão delicada que quase parecem verdadeiras – há quem tenha de lhes tocar para ter a certeza de que são mesmo de papel.
A última edição das Festas do Povo aconteceu em 2015. Em 2020, já se faziam os preparativos para as festas quando a pandemia de covid-19 interrompeu todos os planos. “Foi uma tristeza muito grande”, recorda Vanda Portela, que tinha acabado de ser eleita em janeiro desse ano para a direção da Associação das Festas do Povo. “Por causa das eleições da associação, estava tudo um bocadinho atrasado, mas andámos de porta em porta falando com os moradores e nessa altura, em março, já tínhamos 82 ruas inscritas.”
Rua 13 de Dezembro
Uma das especificidades das festas de Campo Maior é que não têm periodicidade definida: “Só há festas quando o povo quer”, diz-se por ali. “Geralmente, quando chegamos às 70 inscrições de ruas ou troços de rua, sabemos que temos condições para avançar. Depois, aparecem sempre mais porque, havendo festas, ninguém quer que a sua rua fique de pousio: uns entusiasmam os outros, sobretudo na zona mais antiga da vila. Acredito que facilmente chegaríamos às cem ruas”, conta Vanda Portela. Infelizmente, devido à covid-19, o “pousio” foi forçado, geral e prolongado. Agora, se tudo correr bem, as Festas do Povo hão de voltar a realizar-se em 2023.
“Vamos voltar em grande”, garante a responsável. “Até porque temos mais um motivo para festejar.” É que, em dezembro passado, as Festas de Campo foram inscritas na lista de Património Cultural Imaterial da UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, mas – mais uma vez devido à pandemia – não houve hipótese de viajar a França, onde a reunião se realizou, nem de celebrar convenientemente o feito: “Comemorámos nas redes sociais, o melhor possível, mas não foi a mesma coisa”, lamenta.
Ainda assim, que não haja dúvidas: “Os campomaiorenses ficaram muito orgulhosos, pois foi reconhecido o seu mérito. Ao longo de cem anos, esta população dedicou-se e trabalhou voluntariamente. Muitos homens e mulheres trabalharam para manter estas festas, apesar de todas as dificuldades, e as festas sempre se foram realizando e sempre foram melhorando: além de haver mais ruas envolvidas, a qualidade da ornamentação é cada vez maior, a visibilidade também aumentou. E temos cada vez mais visitas – não podemos saber ao certo, mas na última edição estimamos terem sido mais de 700 mil pessoas”, diz Vanda Portela. “O reconhecimento da UNESCO é também uma janela para o mundo. Já recebíamos muitos visitantes de Espanha e de outros países, agora esperamos que venham ainda mais e que toda a gente conheça as nossas festas.”
A origem das festas
Para se perceber a origem das Festas do Povo, é preciso recuar até ao século xviii e às festas de São João Baptista, padroeiro de Campo Maior, que se realizavam a 28 de outubro para comemorar a data em que, em 1712, a povoação se tinha libertado de “um cerco que pusera em risco os seus bens e as suas vidas”, segundo os documentos da época. Francisco Pereira Galego, professor campomaiorense que investigou diversas facetas da história da vila, conta, na obra Campo Maior. As Festas do Povo das origens à atualidade (Livros Horizonte, 2004), como essas festas caíram um pouco no esquecimento na segunda metade do século xix, e, quando foram retomadas, no final desse século, recuaram para o final de agosto e início de setembro, abandonando o carácter exclusivamente religioso para passarem a ser sobretudo festas populares: mantinha-se a procissão, mas agora com ornamentação e iluminação noturna das ruas, touradas, bailes e outras diversões.
Nessa altura, Campo Maior vivia um tempo de prosperidade económica. A agricultura desenvolvia-se, com pequenos proprietários que produziam vinha e oliveira. A proximidade da fronteira permitiu o desenvolvimento do comércio, nomeadamente através do contrabando. E foi neste ambiente que os “artistas” – ou seja, todos os que se dedicavam ao comércio e às artes manuais e outros ofícios, constituindo uma classe trabalhadora mais urbana e, de modo geral, mais escolarizada – se juntaram para, em 1893, organizar as Festas em Honra de São João Baptista. Nesse primeiro ano, as festas duraram quatro dias e foram um sucesso. De tal forma que se decidiu repetir a experiência nos anos seguintes. As festas começaram então a ser preparadas com mais antecedência por uma comissão constituída para o efeito.
No ano de 1894, pela primeira vez, as festas encerraram com uma marcha de archotes, com a qual a população manifestava o seu reconhecimento aos elementos da comissão organizadora e aos que tinham contribuído com os seus donativos para a realização dos festejos. Mas a grande novidade foi a “enramação” das ruas. Tratava-se ainda de um processo muito simples de ornamentação, com mastros e paus ligados por cordas cobertas de buxo, das quais pendiam os elementos que faziam a “iluminação à veneziana” (com balões e harmónios de papel com velas dentro ou pequenas lamparinas de pavio a azeite). Apareceram também os primeiros enfeites de papel, como bandeirolas e galhardetes. Em algumas casas, as mulheres trouxeram vasos de plantas dos quintais e colocaram-nos nas frontarias para enfeitar a rua. As duas orquestras filarmónicas – Progressiva e Regeneradora – participaram nos arraiais e na procissão, houve touradas e, à noite, bailes e fogo de artifício.
“Além das festividades de igreja, que são feitas com toda a pompa e luzimento, torna-se notável a ornamentação das ruas e praças, que os seus moradores à porfia têm revestido de verdura e flores, o que lhes dá um aspeto muito pitoresco, que à noite é realçado pelo brilho de vistosas e profusas iluminações a balões e lanternas”, escrevia o Correio Elvense a 31 de agosto de 1894. E uns dias depois relatava como “todos os habitantes, possuídos da mais completa vontade de união, começaram dias antes das festas a trabalhar, de dia e de noite nesse embelezamento”. Ou seja, já lá estavam todos os elementos principais daquilo que viriam a ser as Festas do Povo.
Rua Dr. Tello da Gama
As “Festas do Povo”
Durante seis anos, as festas realizaram-se promovidas pelos “artistas” mas com a participação de toda a população. Desde início, coube às mulheres, “as formosas de Campo Maior”, essa tarefa de ornamentação das ruas, espicaçando-se entre si para ver quem teria as flores mais bonitas. Nesta altura, eram ornamentadas cerca de 30 ruas, ou seja, todas as ruas da vila. E, apesar de esta ser feita sobretudo com plantas, apareciam já algumas ornamentações com papéis coloridos.
As festas perderam o seu fôlego nos anos seguintes e terão mesmo sido interrompidas por uma dezena de anos no início do século XX para regressarem em 1921, segundo relatos do jornal O Campomaiorense, nos primeiros quatro dias de setembro. Entre missas e procissões, touradas e corridas de bicicleta, quermesses e bailes, lá estavam, no programa, as “ruas ornamentadas”.
“A maioria dos largos e ruas da vila, algumas as mais modestas, vimos vistosamente enginaldadas com festões de buxo e bandeirolas, levantando-se em muitas delas grandes e decorados mastros, tudo iluminado à noite com grande quantidade de balões venezianos, lanternas e lâmpadas elétricas, o que, junto às iluminações das casas particulares, dava à vila um aspeto muito agradável”, contou O Campomaiorense na sua edição de 15 de setembro. “Louvores pois a todos os que concorreram para que esta terra, em poucos dias, se tornasse num completo jardim, assumisse pela sua garradice um tom assaz brilhante e festivo, o que podemos afoitamente dizer que foram todos os habitantes da vila, homens, mulheres e rapazes, que todos à porfia, da melhor vontade, concorreram para o engrandecimento das festas.”
E, porque fica já claro o carácter popular e coletivo da empreitada, não admira que em 1922 surja pela primeira vez, nesse jornal, o termo “Festas do Povo”, segundo explica Francisco Galego: “A expressão teve como seu criador o homem que animou a vida cultural de Campo Maior nesta época, João Ruivo. Ele era, de facto, a alma e o corpo do jornal.”
Festas do Povo: assim passaram, então, a ser chamadas estas festas em que “as ruas da vila surgiram vistosamente engalanadas como que numa apoteose mágica. Cordões de verdura, bandeiras multicolores, galhardetes, arcos de triunfo a quebrarem a monotonia dos dias normais”, segundo o jornal.
Rua de Olivença
Periodicidade irregular, mas cada vez com mais qualidade
Apesar de todo o entusiasmo, a partir daí as festas não iriam realizar-se todos os anos, devido aos grandes constrangimentos económicos, aos sobressaltos políticos e também a problemas na organização do evento. Na década de 1930, por exemplo, só se realizaram por quatro vezes. Nesta altura, Portugal passou a viver no Estado Novo, pouco depois começava a Guerra Civil de Espanha e depois a Segunda Guerra Mundial. Há relatos de festejos, ainda que modestos, em alguns anos da década de 1940 e, depois, numa tentativa de reanimação da tradição, nos anos de 1952, 1953 e 1954. Escreve Francisco Galego:
“Embora se mantivesse o esquema tradicional, havia uma maior preocupação com a decoração dos ‘tetos’ que deixaram de se limitar às formas tradicionais das franjas, cadeados, lenços e mantilhas, adquirindo uma maior riqueza ornamental. As flores artificiais multiplicaram-se em formas cada vez mais originais e elaboradas, e as ‘entradas’ feitas em caniços deram lugar a estruturas construídas em materiais mais consistentes e com maior apuro decorativo, tornando-se um elemento essencial na ornamentação das ruas.”
Mais flores em papel e mais espetáculos de variedades – essas eram as tendências a registar. “São, na verdade, as Festas do Povo, porque é o povo, numa manifestação de vontade coletiva, que transforma por completo a vila num encantador jardim das mais variadas e caprichosas tonalidades”, conta o jornal Linhas de Elvas em 1952. “Cada rua, cada travessa e até cada beco surgem a nossos olhos qual encantador painel que mão de consagrado artista tivesse trabalhado. (…) Causa, na verdade, admiração e pasmo ver tanta beleza e arte semeadas por mãos calozas de rapazes e raparigas que, durante mais de três meses, consecutivos, laboram pacientemente e até altas horas da madrugada, as florzinhas, lustres, franjas e demais enfeites originais em elegantes recortes de papel a cores.”
Mais uma vez, apesar do enorme salto qualitativo verificado no ano de 1957, as festas só voltariam a realizar-se em 1965 e 66 (época de grande prosperidade e movimentação em Campo Maior devido à construção da Barragem do Caia) e, depois, em 1972.
Rua Dr. Tello da Gama
Uma nova era: a democracia e a modernização das festas
As primeiras Festas do Povo pós-25 de Abril aconteceram em 1982, era Rui Nabeiro presidente da Câmara de Campo Maior e um dos maiores impulsionadores do evento. Foi, escreve Francisco Galego, “o ano da reconciliação da comunidade campomaiorense”, após o período revolucionário. Logo em fevereiro ficou decidido que haveria Festas e um comunicado da Comissão apelava à população:
“Para que as Festas sejam inesquecíveis, será necessário que todos, habitantes de Campo Maior, nos unamos todos num esforço extraordinário, que esqueçamos as nossas ofensas, as nossas disputas partidárias e que, irmanados num mesmo ideal, possamos oferecer o que de melhor, a nossa Alegria, Amizade e Amor, saibam e possam criar.”
Nesse ano, a Câmara disponibilizou mil contos para subsidiar as despesas com o papel e, segundo alguns relatos, terão sido usadas 25 toneladas de papel para enfeitar as 94 ruas participantes. Na inauguração, um convidado muito especial: o Presidente da República, Ramalho Eanes.
A partir de então, apesar de as festas continuarem a ser do povo, a autarquia passou a ter um papel essencial na organização de todo o evento, porque se percebeu rapidamente que havia uma série de questões práticas que tinham de ser asseguradas: desde a eletrificação à segurança, passando pela programação das atividades paralelas à garantia de condições para os muitos visitantes. As festas de 1985 começaram a ser preparadas em 1984, assumindo-se também e definitivamente como um grande acontecimento turístico, capaz de atrair milhares de visitantes.
Em 1994 foi criada a Associação das Festas do Povo de Campo Maior, que é, desde então, a principal responsável por toda a organização. A Câmara de Campo Maior e a Entidade Regional do Turismo do Alentejo e Ribatejo são os principais parceiros do evento. Em 2015, pela primeira vez, a vila foi “fechada” e os visitantes tiveram de pagar bilhete para entrar nas festas. Foi uma forma de conseguir algum financiamento e também de garantir a segurança de todos e uma organização mais cuidada do evento. “Mas é claro que os moradores não pagam, nem os familiares, nem as pessoas que trabalham na vila, nem todos aqueles que participaram na organização ou que têm uma ligação às ruas…”
Longos serões a fazer flores no maior segredo
Vanda Portela tem saudades das festas, mas tem também muitas saudades do que acontece antes das festas: “No dia em que os visitantes começam a chegar, existe aquele entusiasmo de mostrar o nosso trabalho, de ver o que os outros fizeram, de termos a vila toda enfeitada. É uma satisfação enorme. Mas para nós as festas já começaram há muito tempo.”
Quase poderíamos dizer que “assim que acaba uma festa começa-se logo a pensar na próxima”. Os cabeças de rua aproveitam os dias das festas para ver o que correu bem e o que correu mal e para começar logo “a apontar ideias”. Não tarda estão já a delinear planos, mesmo sem ter a certeza de quando será a próxima edição. “Agora mesmo, se formos falar com os cabeças de rua, tenho a certeza de que todos eles já sabem o que vão fazer para o ano”, garante Vanda Portela.
Cada rua pode ter um ou mais cabeças de rua. Esta é a pessoa que tem a responsabilidade de reunir os moradores, de ser o seu representante e de gerir todo o processo. “É preciso fazer um plano, um desenho, com aquilo que se imagina e, depois, perceber como é que as ideias podem ser postas em prática, que tipo de estrutura será necessária, dependendo da arquitetura da rua, definir o modelo do pórtico, a forma dos arcos, a quantidade de papel que será necessário, os materiais que é preciso requisitar… São cálculos bastante complicados. Os mais antigos têm isso tudo registado e vai passando de cabeça de rua para cabeça de rua. É uma responsabilidade muito grande. O cabeça de rua tem de distribuir as tarefas por todos os moradores, tem de ir à associação para fazer o pedido de material, participar nas reuniões de organização das festas.” Tem de antever as dificuldades e resolver os problemas, depois, quando eles surgirem.
O trabalho manual propriamente dito começa meses antes das festas. “O ideal é em janeiro ou fevereiro arrancar logo com os trabalhos. As pessoas começam a fazer flores por essa altura e nunca é cedo demais”, conta a presidente da Associação. Os campomaiorenses juntam-se em casa uns dos outros, às vezes em armazéns ou garagens. E entre conversas e gargalhadas vão criando as delicadas e cada vez mais criativas flores de papel. Este é tradicionalmente o trabalho das mulheres, enquanto os homens ficam responsáveis pela construção das estruturas, as pinturas, a parte elétrica. “É sempre aproveitada a aptidão de cada um. Se és melhor a cortar, vais cortar o papel. Se sabes montar flores, vais montar flores. Se gostas mais de pintar, vais pintar.”
As crianças também participam. “Em pequenos, todos nós assistimos aos serões e começámos por fazer aqueles trabalhos simples, os torcidos para fazer flores ou forrar arames, por exemplo”, explica Vanda. Há casos de pessoas que vêm de outras ruas, ou porque nasceram ali ou têm alguma ligação àquela rua ou porque moram numa rua que não participa.” São todos bem-vindos. Desde que sejam de confiança. “Tudo é feito em grande segredo. É uma das essências da festa. Ninguém de fora da rua pode saber como vai ser.”
Na noite da enramação ninguém dorme em Campo Maior. “É a loucura total. Todas as pessoas saem à rua e, assim que começa a cair a noite, começam a saltar os segredos. Normalmente sob a batuta do cabeça de rua, que vai dizendo quantos laços, quantas cordas, como é a entrada. É tudo feito meticulosamente.” A vila acorda completamente enfeitada.
Vanda Portela explica: “Uma das características das nossas festas é que o público passa a privado: deixa de ser ‘uma rua’ para ser ‘a minha rua’, com uma entrada e uma decoração próprias. Quando as pessoas entram na rua, é como se entrassem na minha casa. Por outro lado, o que é privado passa a ser público: abrimos as portas de casa, colocamos mesas e cadeiras na rua. Há uma grande partilha. Porque gostamos mesmo de receber todas as pessoas para lhes mostrar o nosso trabalho.”
Neste momento, a presidente da associação já só pensa em 2023: “Se o povo quiser, haverá festas.” E garante: “É muito trabalho: muitas horas, muita dedicação, às vezes algumas chatices, porque é muita gente. Mas depois tudo se esquece.”