Disseram-me um dia que um chef deve ter sempre três coisas: um livro de receitas, uma faca afiada e o domínio do fogo.” Vítor Adão, flaviense radicado há vários anos em Lisboa, reproduz a frase enquanto maneja uma frigideira de ferro sobre brasas vigorosas. O domínio do fogo parece estar assegurado, no seu caso. Facas afiadas e livros de receitas também fazem parte do seu acervo. Estamos na cozinha acanhada (porém funcional) do seu restaurante, Plano, para tentar perceber porque é que também ele se rendeu à tendência recente de restaurantes modernos, discípulos do fine dining, onde se cozinha tudo – ou quase tudo – em fogo vivo. Tendência essa internacionalmente apelidada, num trocadilho mais do que apropriado, de fire dining.

Adão recusa a ideia de ter seguido uma moda. “Não quis aproveitar toda esta cena à volta do fogo. Calhou coincidir, porque a minha intenção já era fazer isto.” E justifica a sua piromania, primeiro, pelas origens transmontanas – “Não há um restaurante tradicional em Trás-os-Montes que não use potes de ferro no fogo.” – depois, pelo seu percurso profissional, boa parte dele como braço direito de Ljubomir Stanisic em todos os seus projetos. “No Sublime [Comporta] e no Six Senses [Douro] fazíamos muita coisa com fogo. Não se falava tanto nisto, mas já fazíamos.”

Essa influência tornou-se visível logo na abertura do seu primeiro restaurante em nome próprio, precisamente este Plano, no verão de 2019: numa primeira fase, começou por servir refeições apenas ao ar livre, no jardim do espaço que também inclui um pequeno hotel. Ao abrir o portão desse jardim, o chef exibe, num canto, a lenha que tem acumulada para usar nos próximos dias: “Acabei de receber duas toneladas de azinho.” A pilha é impressionante, mas vai desaparecer depressa, garante. “Em média, ando a gastar duas toneladas e meia de lenha por mês. Cerca de 80% do que faço na cozinha vai ao fogo.” Voltamos à cozinha, junto ao grelhador, que foi desenhado por si. A temperatura, no seu interior, “pode chegar aos 600, 700 graus”, conta. 

A versatilidade dos produtos que trabalha – tanto grelha peixes delicados em espetada japonesa numa ponta como noutra repousa um tacho de mão de vaca – obriga a atenção constante. Mas Adão gosta do desafio. “As pessoas acham que no fogo se cozinha sempre mais devagar. Só que não é bem assim. É preciso muita atenção, senão queima-se tudo.”

Este crescente apreço das cozinhas modernas pela técnica mais rudimentar de confeção de alimentos não surge por acaso. Será possível, até, apontar um restaurante em concreto como culpado.

Chama-se Asador Etxebarri, fica na pequena vila de Atxondo, no coração do País Basco. O seu chef e proprietário, Victor Arguinzoniz, é uma sumidade mundial da cozinha com fogo: tudo no seu restaurante, das entradas às sobremesas, é confecionado sobre brasas, que cria com carinho e cuida com precisão diariamente, seguindo a tradição dos asadores locais que frequentava enquanto criança.

Quando, em 2011, um repórter do New York Times perguntou a Anthony Bourdain onde é que gostaria de morrer, a sua resposta foi simplesmente: “Etxebarri”. A partir daí, o restaurante basco tornou-se destino gastronómico incontornável e a fama que tinha na região espalhou-se, rapidamente, por todos os continentes. Essa fama levou a que outros chefs, inspirados pelo exemplo de Arguinzoniz, abrissem também eles restaurantes dedicados a este tipo de cozinha. 

Em Portugal existe uma relação antiga com a cozinha a carvão ou a lenha. Do churrasco caseiro aos restaurantes mais tradicionais que sempre viram na grelha o seu principal aliado. É o que acontece, por exemplo, nas inúmeras casas especializadas em peixe fresco, de Viana do Castelo a Vila Real de Santo António, que começam a tratar das brasas diariamente bem cedo, assim que a matéria-prima chega da lota local. 

O Último Porto, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Alcântara, é um dos restaurantes desta gama mais reputados na capital. A larga maioria dos pedidos sai diretamente da grelha, que fica no exterior, (muito bem) gerida pela minhota Maria do Céu. Céuzinha, para amigos e habitués, era a cozinheira principal do restaurante há mais de uma década. Orientava-se entre tachos, panelas e fogões a gás. Mas, certo dia, quando o colega que costumava estar na grelha faleceu, as suas funções mudaram. “Nessa altura, o patrão disse-me: ‘vai para a grelha e faz o teu melhor’. Eu avisei-o de que nunca tinha trabalhado com brasas. Mas pronto, fui, dei o meu melhor e estou aqui há seis anos.” Céu domina as três grelhas sozinha, com vigor, desembaraço e sorriso pronto. Sobra-lhe ainda tempo para ir à cozinha fazer pataniscas, favas – “quando alguns clientes pedem” – e as sobremesas. 

Curiosamente, o primeiro restaurante a trazer o fogo para a cozinha moderna em Portugal não foi bem-sucedido. O Achas na Fogueira surgiu no Porto, em 2016, com uma cozinha exclusivamente a lenha, de sete tipos diferentes. Fecharia, porém, cerca de um ano depois, sem deixar grande marca nem saudade. No verão seguinte, Ljubomir Stanisic levou para o Sublime Comporta um conceito baseado no fogo, o Food Circle, numa estrutura construída no meio de um jardim de ervas aromáticas. O conceito persiste, nos meses de verão, agora com outro chef, Hélio Santos, aos comandos.

O fogo foi-se, entretanto, alastrando. Do festival Chefs on Fire, que mistura gastronomia (exclusivamente sobre brasas) e música, a novos restaurantes focados em manter a chama acesa. O Elemento, no Porto, é um deles. O projeto, do chef Ricardo Dias Ferreira e da namorada Patrícia Lourenço, chefe de sala, nasceu da vontade de ambos de regressar da Austrália, onde trabalhavam há já alguns anos. No Elemento, a maioria das criações passam pela grelha gigante desenhada por Ricardo, onde a comida pode ser confecionada e fumada, na zona de brasas. Ao lado, um forno a lenha a fazer lembrar os das casas de campo. 

Ricardo foca-se, sobretudo, na qualidade do produto – gosta, sobretudo de trabalhar peixe e marisco –, no respeito pela sua sazonalidade e na marca que cada tipo de lenha pode imprimir na sua comida. Daí que opte por combinações simples, com poucos ingredientes, para que cada um possa brilhar. Em Lisboa, há outro nome a reter nesta nova vaga de cozinha de fogo. Dá precisamente por esse nome, Fogo, e estava na mente do seu criador e responsável máximo, Alexandre Silva, praticamente desde que este abrira o seu outro restaurante com quatro letras, o Loco, em 2015. Entre esperar pelo momento certo e os atrasos na obra, o projeto só se concretizou no final do ano passado. 

Neste Fogo, até a fachada exterior é revestida a rocha vulcânica dos Açores: a intenção é transmitir a ideia de um espaço renascido das cinzas. Daí que, passando para o interior, o preto continue a ser a cor dominante. A cozinha, entregue à liderança de Manuel Liebaut, um dos homens de confiança de Alexandre Silva, é focada no produto, e, por isso mesmo, intimamente ligada à disponibilidade dos mercados, sem uma ementa demasiado fixa, que tira partido das diferentes zonas de confeção: robata, forno a lenha, zona de fogo aberto ou das brasas onde repousam tachos de ferro. O fumo é encarado como mais um ingrediente, até nos cocktails. Já este ano, Alexandre tornou-se também responsável pelo restaurante do Craveiral Farmhouse, um projeto de turismo rural na Costa Alentejana, mais uma vez dando preponderância ao fogo. Ou seja: este incêndio está longe de estar circunscrito.