Contudo, os valores na base do partido fundado por Mário Soares – que para ele foi um exemplo, além de um amigo – nortearam a carreira política e, até, a vida daquele que gostava de ser tratado, simplesmente, por senhor Rui.
A História vai recordá-lo e reconhecê-lo como o grande empresário da democracia. Nos últimos 50 anos, ninguém chegou ao seu nível.” A convicção é de António Cachola, economista, coadministrador da Delta e amigo. José Rondão de Almeida, no comando da Câmara de Elvas desde a década de 1990, reforça: “Foi o maior empresário do Alentejo e acompanhou sempre a política da região, apoiando as campanhas, dialogando e transmitindo sempre um sentido de missão aos autarcas.”
Para ele, “o tio Rui” – 12 anos mais velho e uma referência desde a infância – “ensinava, através do exemplo, que a política é para servir o povo, não para o político se servir dela”. Por outras palavras, as de Cachola, também conhecido pela sua coleção de arte, sediada na sua Elvas natal, “o seu interesse pelas pessoas e pela resolução dos seus problemas era genuíno, não provisório ou oportunista, para ter votos ou proveito próprio”.
Constante e consistente, “não tinha desvios nem contradições, fosse como empresário ou político, estava sempre alinhado com os valores do 25 de Abril”, sublinha ainda o amigo, lembrando que antes da revolução, das duas vezes que esteve à frente da autarquia de Campo Maior, “tentou governar como se estivesse numa democracia e não lhe facilitaram a vida”.
Afinal, embora dissesse “Sou socialista porque o meu pai era socialista”, como se o fosse mais por herança do que por convicção, “na verdade, praticou sempre os valores do socialismo, que se definia por tratar bem as pessoas e os territórios, além de ser um homem de consensos, que achava que o PS e o PSD se deviam entender e que defendia o diálogo”, afirma, por seu lado, Ricardo Pinheiro, atual deputado (pelo PS), que em 2009 chegou à presidência do Município de Campo Maior, aos 29 anos, incentivado por Nabeiro, em cuja empresa trabalhava desde os 18.
“Essa capacidade de diálogo foi o que o tornou intocável”, anota Cachola: “À esquerda e à direita, todos o respeitavam e admiravam.” A História não o deixa mentir. De facto, das cinco vezes em que foi presidente da Câmara de Campo Maior, entre 1962 e 1986, Nabeiro procurou sempre unir as forças partidárias, dando pelouros e oportunidades de governação, ao seu lado, a outras, como o PCP.
Não terá sido fácil. “Era uma época convulsiva politicamente, de confrontos extremados, especialmente com a reforma agrária, mas ele mantinha um espírito aberto, democrático, de diálogo”, realça o deputado, que abraçou o legado: “Ele era o meu modelo; portanto, perpetuei a sua maneira de estar e governar, ao ponto de haver quem questionasse: ‘Afinal quem é que manda na Câmara?’ Na verdade, ele nem se metia desde que visse que as coisas estavam a ser bem feitas, de acordo com a organização do espaço público que considerava correta. E eu segui muito os conselhos dele.”
Divertido, recorda que esses conselhos muitas vezes lhe chegavam através de uma espécie de telepatia: “Com um contacto quase diário nos últimos 20 anos, criámos uma relação em que, em qualquer lado, num evento público, bastava um olhar para perceber o que ele me estava a dizer.”
De ideologia, Rui Nabeiro pouco falava. “Não entrava em questões filosóficas ou altamente complexas. Para ele, tudo o que não se podia resolver rapidamente, nem valia a pena pensar”, conta Pinheiro. Preferia solucionar problemas – e depressa. “Há décadas que dizia, por exemplo, que o que gastamos no combate aos incêndios devia ter sido gasto em prevenção e organização do território, que se devia apanhar as pessoas sem trabalho e aplicar recursos públicos dignos para as levar a fazer as limpezas das matas.”
Rui Nabeiro com António Ramalho Eanes, Presidente da República entre 14 de julho de 1976 e 9 de março de 1986.
Muita obra, poucos erros
Misturando-se com o povo, nas ruas, ouvia, observava, absorvia tudo. Depois, avaliava e confrontava os dados. Como diz o deputado de 42 anos, “tinha um modelo de processamento que lhe permitia fazer grandes operações mentais; por isso, cometeu muito poucos erros. A prova é o grande reconhecimento que teve da sociedade – e o povo dificilmente se engana”.
No fundo, era como se estivesse permanentemente em campanha, mas também se sabia resguardar, afiança Pinheiro: “O equilíbrio é fundamental. Ele dizia que era tão importante estar na rua, ouvir, como ter noção de quando estamos a aparecer ou a falar demais. É preciso tempo para nos resguardarmos e pensar.”
Claro que se orgulhava das ovações, das conquistas e comendas. Afinal, não há político que não tenha um traço de vaidade – e ele próprio o admitiu, citado na biografia O Homem, Uma Obra, ao afirmar que “qualquer pessoa que desempenha um cargo público está obviamente a promover-se”. Porém, eram as más críticas que o punham a mexer: se alguém lhe apresentava uma queixa razoável, fazia questão de ter o problema resolvido quando reencontrasse a pessoa. “Era essa a postura que ele achava que todos os políticos deviam ter”, resume Ricardo Pinheiro, que cresceu a olhar para Nabeiro como “uma presença muito forte, admirada por todos os campomaiorenses”.
Rui Nabeiro discursa no edifício da Câmara Municipal de Campo Maior, na Praça da República, nos anos 70, numa das cinco vezes em que foi autarca.
Afinal, não era comum os filhos da terra chegarem perto dos governantes de escala nacional, e ele conseguiu-o, ainda antes do 25 de Abril. “Foi através de um advogado de Lisboa, com ligação a um importador de cafés que trabalhava com ele. O nome veio à baila, com boas referências, e pronto, foi nomeado presidente da Câmara”, conta o deputado.
Os litígios não tardaram: “A malta da região não o reconhecia como alguém que pudesse exercer poder, porque vinha de baixo. Ele, aliás, ainda se preocupava com isso nos dias de hoje, porque a malta que pensava assim na altura, ainda pensa o mesmo, não mudou. A classe social dele, como costumava dizer, causava alguma comichão.”
Acima de tudo, a justiça social
É verdade que vinha de baixo, mas descendia de grandes empreendedores. Com o pai e o tio, que arriscaram – com sucesso – no negócio dos cafés, era ele miúdo, tinha aprendido duas lições valiosas: o poder da ambição e do trabalho e a importância de saber rodear-se de gente competente e justa.
“Adorava encontrar boas pessoas, com bons valores, fossem de que quadrante político fossem. Por outro lado, detestava a crítica pela crítica. Quando não estava de acordo, dizia, mas era naturalmente delicado, tinha capacidade para perdoar os erros dos outros. Por isso, nunca ofendia ou magoava alguém; era sempre construtivo a dar a sua opinião”, recorda, ainda, Pinheiro, sublinhando que a justiça social foi sempre o cavalo de batalha de Nabeiro.
A amizade com Mário Soares remonta aos anos de pós-revolução e manteve-se até à morte do fundador do PS, em 2017.
“Como empresário, foi dos primeiros a valorizar as profissões do saber-fazer, a tornar mais confortável o nível de vida dos que ficavam no campo, dando mais hipóteses às novas gerações”, aponta o deputado. E o amigo António Cachola, que já com ele privava nos anos 80, acrescenta: “Como autarca, ia recebendo as pessoas. Depois, o seu lado empreendedor resolvia os problemas. A habitação e a proteção de rendimentos eram prioridade. Arranjava empregos e dava apoios, por exemplo, para a educação.”
Certo é que Rui Nabeiro sempre foi um político, mesmo não exercendo, como garante Ricardo Pinheiro: “Geria a vida e a empresa como um autarca deve tratar o seu município, focado numa conquista diária, aprofundando os laços com o cliente… ou com o povo. Foi assim até ao fim da vida, tinha aquele bichinho.”