Aveiro

Sendo que o pacto de honestidade está à partida firmado entre nós e o leitor, vamos avançar para outro: não chamarmos a Aveiro “a Veneza portuguesa”. É uma comparação desnecessária e que, no limite, nos levará a encostar a italiana à parede para lhe perguntar onde estão os seus ovos moles, os padrões de azulejos a embelezar as mais pequenas ruas ou as anedotas brejeiras pintadas nos barcos dos seus canais. 

Junto ao canal principal, os turistas estrangeiros deixam-se conquistar pelo que é incomparável em Aveiro. São eles que adensam o tráfego de moliceiros e que, em confeitarias como a Peixinho, a Veneza, a Maria da Apresentação ou a Pastelaria Ramos, estranham a intensidade dos ovos moles. Tomamos outros caminhos que não os seus.

Entramos pelo Edifício da Cooperativa Agrícola, marco da Arte Nova na R. João Mendonça, e chegamos ao Primeiro Balcão, uma loja de roupa, móveis e bricabraques em segunda mão. Tanto folheamos revistas dos anos 90 portugueses, como pegamos num dos primeiros conjuntos da Tupperware. Subindo a rua, mais uma casa única: o Mercado Negro é uma associação cultural com sala de chá, bar, palco para concertos, sala de exposições, livraria e uma decoração ao estilo gabinete de curiosidades.

Pelo almoço, chegamos ao Marinhas, um restaurante-instituição onde filetes de polvo, línguas de bacalhau fritas ou os peixes grelhados são servidos com caldoso arroz do mar ou migas de couve e feijão-frade. 

Para o pequeno desvio do centro ao restaurante, a bicicleta é o meio ideal. As Bugas são as bicicletas partilhadas e gratuitas da cidade e levar uma delas até ao Pórtico do Canal é obrigatório – com sorte veem-se as pirâmides de sal. Os acessos da cidade permitem mesmo viagens maiores. Atravessar a ria em direção a Ílhavo faz-se com toda a segurança, é para lá que seguimos.

Ílhavo

A burguesia do início do século XIX construiu moradias para impressionar, entre Aveiro e Ílhavo. Como efeito, esta zona é um bastião da Arte Nova, com 27 edifícios identificados, alguns fora das cidades. É o caso das Vila Papoila Cruz e Vila Papoila Magano que, com as suas cores esfuziantes, mereciam ser admiradas com mais distância do que a estrada permite. 

No centro de Ílhavo, a Vila Africana, coberta a azulejo amarelo e com gradeamentos em ferro azul, contrasta com as casas em redor e, uns metros depois, a Casa dos Cestos é exemplo da influência do arquiteto Raúl Lino na época. No centro da cidade, vale a pena espreitar a centenária retrosaria Tricana e os seus painéis de azulejos, antes de voltarmos às margens da ria – agora, ao Lugar de Vista Alegre. 

O nome é este por causa da inscrição numa fonte – “Bebe, pois, bebe à vontade. Acharás que é (muitas vezes) tão útil para a saúde quão para a vista alegre”. Mas a primeira fábrica de porcelana portuguesa, aqui fundada em 1824, fez com que Vista Alegre ganhasse outro sentido. O hotel Montebelo Vista Alegre, junto ao edifício da fábrica, presta homenagem aos métodos de fabrico e é uma exposição viva do portefólio da marca, presente ora nos serviços de chá nos quartos, ora nos mais requintados lavatórios de casa de banho.

A viagem pelo arquivo da marca continua no Museu da Vista Alegre. Basta atravessar a vila operária recuperada, onde ainda moram trabalhadores, para entrar na exposição. Aqui há um registo também das vivências operárias: a filarmónica, o clube de futebol, o carro dos bombeiros e o teatro dão o lado humano à visita que começa com a entrada no mastodôntico forno de loiças.

Torreira

Esta estância balnear entalada entre a ria e o mar tem o encanto das arquiteturas aleatórias. A apresentação a este urbanismo ligeiramente eufórico, típico das casas de férias, fica feita logo à entrada do largo da Varina, onde há um quiosque de farturas mesmo ao centro. 

É neste largo que se enfrentam – literalmente, um virado para o outro – o restaurante Onda Sol e o Avenida Praia. O primeiro é tudo o que se pode esperar de uma marisqueira; o segundo, um restaurante com uma boa carta de vinhos onde as enguias de escabeche, tradicionais da região, são imperdíveis e o Bacalhau à Lisbonense, bem cremoso, um clássico inesperado.

Os passeios de bicicleta pela calma da estação fria são a forma de, num instante, ver os sapais e o moliço da ria, os icónicos cais da Murtosa e ainda, se houver sorte, a arte xávega em ação nas praias. Para se pôr em cima de uma basta contactar com antecedência o Murtosa Ciclável, projeto da Câmara Municipal que empresta bicicletas gratuitamente, fazendo jus ao título de concelho com a mais alta taxa de utilização da bicicleta no país.

As duas rodas seguirão firmes até ao Estaleiro-Museu do Monte Branco, um pequeno polo para perceber a cultura à volta das embarcações típicas da ria. Em poucos metros quadrados disseca-se a anatomia dos barcos, os seus símbolos, a mestria dos pintores – e num quadro interativo aparece um levantamento recente de pinturas humorísticas ou religiosas. Para terminar a visita, basta pedir licença ao mestre José Rito que, na sala ao lado, constrói moliceiros de raiz com a mesma desenvoltura com que faz conversa com os visitantes.

Costa Nova

Se na Costa Nova está o postal mais glosado da ria de Aveiro – os palheiros de pescadores –, comecemos pelo destino mais inesperado: o Minigolfe da Costa Nova. Esta é a casa do grupo amador da zona, com 27 anos de história, e de qualquer um que se atreva nos dois circuitos temáticos, onde piratas e moliceiros são decorações das pistas com diferentes níveis de dificuldade. 

Este é também um bom ponto de partida para uma caminhada ao longo da ria. Até ao mítico quiosque Zé da Tripa vão cinco minutos a pé com variedade na paisagem, do campo de futebol às novas e robustas versões dos palheiros que serviam de apoio à pesca. As listras brancas e coloridas são o que os une aos antepassados do século xix.

O ponto de chegada, o quiosque de José Oliveira, é mítico porque aqui nasceu há cerca de 30 anos a famosa tripa, uma espécie de bolacha americana malcozida, recheada com chocolate ou doce de ovos. O snack é preventivo: estamos prestes a entrar no Mercado da Costa Nova, recheadíssimo de peixe e marisco, e assim não faremos compras impulsivas.

Guardamos para o fim a cedência a um ex-líbris turístico: o Farol da Barra, o mais alto do país, fica a sete minutos de carro e pode visitar-se às quartas-feiras. Nos restantes dias da semana resta-nos a imponência vista de perto, um passeio pela praia e um brinde com uma cerveja que, na Barra, é uma bebida bem tratada. No Mestre Cervejeiro servem-se algumas das artesanais portuguesas; no Márito servem-se imperiais bem vivas (aliás, finos, como aqui são tratados) e um clássico dos domingos de manhã por aqui: Martini com cerveja, um traçadinho, para já, sem outro nome.