Foi com fervor que as dinâmicas intelectuais e políticas marcaram a segunda metade do século XIX em Portugal. Houve Eça de Queirós, Ramalho Ortigão ou Fialho de Almeida; o romantismo destronado pelo realismo; a evolução científica e industrial. Surgem os ideais republicanos e socialistas, cai o rei e finda-se a monarquia. Mais à frente, chegam Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros, pesos-pesados do modernismo português. E, entre o Chiado e o Bairro Alto, os cafés estabelecem-se como o ponto de discussão, onde intelectuais, artistas e jornalistas organizam tertúlias.
É com este contexto como pano de fundo que surge o Bife à Café. Uma “comida retemperante”, descreve a gastrónoma Fátima Moura, que vai buscar o nome ao sítio e não ao ingrediente. “A palavra café é do estabelecimento e não do grão”, sublinha. Equivalente à “comfort food” de que tanto se fala hoje, esta era, afinal, uma solução capaz de acompanhar o ritmo da tertúlia: rápida e fácil de confecionar, podia ser servida até altas horas da noite.
Datado da segunda metade do século XIX, surge para suprir a necessidade dos espaços que, não sendo restaurantes, precisavam de ter uma opção “mais consistente para servir aos clientes”, explica Virgílio Nogueiro Gomes, gastrónomo e autor de Histórias e Curiosidades à Mesa. Locais que não devem ser confundidos com os cafés mais comuns e mundanos, frisa:
“Eram um bocadinho melhores, com clientela mais enriquecida – casas bem decoradas e com boas instalações.”
Guloso, este bife de vaca frito com manteiga, mergulhado em molho de natas, e servido com batatas fritas em palitos, vai-se tornando um prato emblemático da cultura gastronómica alfacinha. Não existem respostas fechadas quanto à sua origem, mas tudo aponta na direção dos estabelecimentos de António Marrare, napolitano e empresário de renome que, à data da sua chegada à capital, no século XIX, trabalhava como copeiro do conde de Nisa.
Responsável pela abertura de três cafés em Lisboa, o Café Marrare do Polimento (primeiro no largo de São Carlos, depois na rua Garrett) torna-se uma referência incontornável. De carácter “literário ou político”, era um “ponto de reunião de todos os elegantes e homens superiores de Lisboa”, descreveu Passos Manuel na obra Memórias, Lisboa (1894–1907).
Foi, no entanto, no Café Marrare das Sete Portas, emblemática casa-irmã junto à rua dos Sapateiros, que surgiu a receita. “Este bife, hoje vulgarmente designado por Bife à Café, foi especialidade que imortalizou um dos mais célebres cafés de Lisboa de príncipio do século, o Marrare das Sete Portas”, lê-se em Cozinha Tradicional Portuguesa, de Maria de Lourdes Modesto. A gastrónoma chama também a atenção para o “serviço exemplar”, feito “em recipientes e cafés de prata legítimas”, além de que era proibido fumar, para que “as iguarias pudessem ser ali mais bem apreciadas”.
Mas há outra origem possível para o famoso bife à Café. Fátima Moura, autora do livro Conversas de Café, lembra que a receita poderá ser também uma derivação do Bife à Sampaio, nome que homenageia Rodrigo Sampaio, jornalista e parlamentar do início do século XX. “Quando saía tarde do jornal, o Sampaio ia sempre comer um bife a um café que ficava na rua do Norte, no Bairro Alto, que acompanhava sempre com um pão grande de meio quilo e com um copo de água. Os jornalistas saíam muito tarde e era comum irem comer um bife”, diz a autora, que cita o gastrónomo e crítico Alfredo de Moraes. Frito na frigideira, geralmente com banha de porco, ao qual era acrescentado um molho com manteiga e natas, é muito parecido com o bife à Marrare.
Ainda que a tese mais consensual aponte o Bife à Café como uma derivação do Bife à Marrare, Maria de Lourdes Modesto diferencia-os com duas receitas distintas. Ambas usam carne do pojadouro, peça que se quer tenra e suculenta; fazem uso da manteiga ou margarina para fritar; e têm um tempero simples, à base de sal e pimenta. A principal diferença está no molho: enquanto o Bife à Marrare usa uma base de natas, o bife à café usa leite, fécula de batata, mostarda e limão.
O segredo está no molho
O Café de São Bento, o Snob e o Café Império são três restaurantes lisboetas que preservam o legado dos antigos cafés de tertúlia e mantêm a tradição do bife à Café. Com bases semelhantes, o molho é o principal traço singular e distintivo – e um segredo jamais revelado. “Já mudamos muitas coisas na carta, mas é proibido alterar o molho do bife”, explica Eden Bertolim, responsável pelo Café Império.
Na esquina da Alameda Dom Afonso Henriques com a avenida Almirante Reis, o mítico café–restaurante abriu em 1955 num emblemático edifício projetado pelo arquiteto Cassiano Branco. Com o intuito de dar apoio ao cinema com o mesmo nome, já trazia os famosos bifes na carta inaugural, acompanhados por batatas fritas em palito e por uma bolinha de pão, dois elementos que pedem um mergulho direto no famoso molho.
À frente da Assembleia da República fica o Café de São Bento, clássico lisboeta também conhecido como a cantina dos políticos. Do lombo ou da vazia, é aqui que se serve o Bife à São Bento, uma das mais fiéis reinterpretações do Marrare, considera Virgílio Nogueiro Gomes. A atmosfera enigmática provocada pela meia-luz e pelos bancos vermelhos aveludados é reforçada por uma porta sempre fechada – o acesso depende do toque à campainha do número 212 da rua de São Bento.
A entrada no Snob, outra “casa de tertúlia e destino de bife”, descreve o responsável Miguel Garcia, faz-se da mesma forma. Mas se durante décadas foi o senhor Albino quem atendeu os clientes à porta, hoje essa tarefa está reservada para um membro da equipa do Grupo Café de São Bento, que em 2024 adquiriu o pequeno restaurante.
Localizado no Bairro Alto, onde antes ficavam muitas redações, o Snob tornou-se um famoso ponto de encontro entre a classe jornalística. “Houve muitas manchetes de jornal que se fizeram aqui”, lembra Miguel Garcia, à frente do Grupo Café de São Bento. Essa herança é recordada através de um menu em forma de página de jornal – uma ementa que preservou os bestsellers da casa, com as respetivas receitas inalteradas.
“Perguntámos ao senhor Albino o que é que tínhamos de manter a 100% e ele respondeu-nos: os croquetes, o prego, a mousse de manga, o bolo de bolacha e, claro, o bife à Snob”.
O processo de preservação não se cingiu à carta. “A renovação do espaço foi no sentido de manter tudo igual de maneira a que o Snob dure mais umas dezenas de anos.” Do chão à cozinha, tudo foi recuperado. As madeiras em mau estado, os estofos gastos e alcatifa envelhecida foram substituídas por versões iguais. O mesmo aconteceu com o latão presente nos candeeiros. “Há vários elementos em latão porque antes funcionava aqui uma latoaria.” Com duas salas, a primeira conserva as paredes cobertas com armários envidraçados que guardam bebidas e muitos livros oferecidos por clientes ao senhor Albino.
“Às vezes, a dificuldade das pessoas é mesmo renovar sem inventar – para renovar, acham que têm de inventar, dar um toque diferente, mas não têm de dar toque nenhum. Isto são lugares intemporais, lugares em que não podemos sentir a passagem do tempo. Quem volta tem de o encontrar igual.”
Hoje detido por um madeirense e uma brasileira (o casal prefere manter o anonimato), os interiores do Café Império têm sido, ao longo dos últimos 69 anos, alvo de remodelações, ainda que alguns detalhes permaneçam inalterados, como o histórico mural de azulejos que percorre a entrada e a sala principal.
Ponto de diversão e troca de ideias em meados do século XX, apesar de existirem elementos que conservam a herança histórica e cultural deste café-restaurante, hoje as tertúlias do Império são outras: com um ecrã gigante no lugar do palco (que noutros tempos recebeu artistas como Madalena Iglésias), o Império enche sempre que há jogos de futebol.
Apesar dos matizes introduzidos pelo correr dos anos, este restaurante faz parte de um clube restrito – do qual fazem parte também o Café de São Bento e o Snob – que evoca a memória dos antigos cafés-clube de Lisboa, dando continuidade a um dos seus mais acarinhados pratos, o Bife à Café.